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Desertos, A Celebração de São João (Ana Paula Cury)

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Reunimo-nos para celebrar a época de São João o Batista.
 
No início do evangelho de Marcos aponta-se para uma de suas características mais fortes, segundo a qual ele é descrito como a “Voz do que clama no deserto”; “E todo o povo foi até ele”.
 
João surge do deserto, da solidão. O que fazia ele no deserto, porque buscava a solidão? Ele buscava o conhecimento do Espírito, que só pode ser alcançado e amadurecido, pelo próprio esforço individual. Ele buscava ouvir a voz daquele que fala no silêncio do coração. O que se manifesta como força na palavra de João, é o divino que pertence ao homem, seu espírito, que não pode habitar nele se não é buscado, conhecido. Em nossa época, tão superficial, acelerada e imediatista, torna-se ainda maior o significado e a importância do “deserto”. 
 
Nós andamos no deserto. Não no deserto físico, mas no deserto interior. Na época de Cristo, o povo de Israel estava em decadência, enfraquecido por sucessivas desilusões com os falsos messias que apareciam, e tinha a mente cética. A religião perdera toda a força dos mistérios, tendo-se tornado o templo, burocrático e vazio, andando ao lado do poder temporal. Em nosso tempo vivemos uma situação parecida em muitos aspectos.
 
De certo modo essa foi a herança do desenvolvimento científico unilateral, que o mundo conheceu desde a segunda metade do séc. XVII. Uma das alavancas desse desenvolvimento foi a visão mecanicista de Descartes a respeito do mundo. A física avançou a partir desta importante visão que tratava o mundo como uma grande máquina, um mecanismo. As pessoas passaram a ver-se a si próprios como egos existindo isoladamente dentro de seus corpos.
 
Em conseqüência passaram a enxergar o mundo também como um amontoado de objetos e fatos isolados, sem relação entre si. 
Para os budistas isso é avidya- (ignorância).

“Quando a mente é perturbada, produz-se a multiplicidade das coisas.
Quando a mente é aquietada, a multiplicidade desaparece”.

Existem enfim, os desertos interiores. Deles é que temos de falar, sabendo reconhecer os que apresentam de doloroso e tórrido, mas tentando também descobrir aí, a fonte escondida, o oásis, a presença inesperada que nos recebe, debaixo de uma palmeira sorridente, em redor de uma fogueira onde a dança dos  passantes se junta às  das estrelas. Pois o deserto não constitui uma meta; é sim, um lugar de passagem, uma travessia. Cada um, então, tem sua própria terra prometida, sua expectativa que poderá ser frustrada, sua esperança a ser confirmada. 
 
Algumas pessoas vivem esta experiência do deserto no próprio corpo; quer isto se chame envelhecer, adoecer, sofrer as conseqüências de um acidente. Esse deserto às vezes demora muito a atravessar.
 
Outras pessoas vivem o deserto no coração de suas relações, deserto do desejo ou do amor, das secas ou dos sofrimentos que não se aprendeu a partilhar.
 
Há também os desertos da inteligência, onde o mais sábio vai esbarrar no incompreensível e o mais consciente, no impensável. Conhecer o mundo e suas matérias conhecer a si mesmo e às suas memórias, isso só se consegue atravessando desertos.
 
Temos finalmente, os desertos da fé o crepúsculo das idéias e dos ídolos, que havíamos transformado em deuses ou num Deus para dar segurança às nossas impotências e abafar nossas mais vivas perguntas.
 
Cada um de nós tem seu próprio deserto a atravessar. E sempre de novo será necessário desmascarar-lhe as miragens, mas também contemplar seus milagres: o instante, a aliança, a douta ignorância e a fecunda vacuidade.
 
Lembremo-nos de que também Jesus após acolher em si o germe do Espírito Crístico com o Batismo no Jordão, dirigiu-se ao deserto, onde enfrentou e venceu o tentador partindo para sua missão redentora.
 
No deserto, a criatura humana se despoja de si, enfrenta seus demônios e forja a própria identidade.
 
João é para nós um mestre do deserto. Neste quase não havida; o calor extremo do dia contrasta com o frio rigoroso da noite. Mas João conhece o deserto e não se desespera, sabe procurar a água escondida, encontrar o oásis de milagres e surpresas, buscar alimentos para manter o corpo. Sabe apreciar o grande espetáculo que chega todas as noites: um céu imensurável recheado de estrelas, que são os grandes amigos e companheiros de jornada. E para aqueles de nós que puderem aprender com João sobre o vazio, a imensidão e o silêncio do deserto, sempre haverá a recompensa do encontro consigo mesmo e com Aquele que É em tudo o que É.


(Baseado em reflexões de Marcus Piedade e em fragmentos do livro Desertos de Jean Yves-Leloup)