Histórias
Por que o casamento na Festa de São João? (Ruth Salles)
Há alguns anos atrás, eu ainda gostava de cantar nostalgicamente e modinha junina:
Mês de junho, mês de frio.
Quanta folha pelo chão.
Cada uma tem um fio
Que me aperta o coração.
Mês de junho, São João...
Quem me dera ser pequeno!
Que saudades do clarão
Da fogueira no sereno!
Pudera! Eu sentia mesmo saudades dos meus 14 anos e das festas simplesinhas de São João em casa de uma tia, num subúrbio do rio. Não era fácil ir. Nós, um bando de primas com nossas mães, tomávamos o ônibus de Copacabana até o centro da cidade, depois andávamos uns quinze minutos até a Praça Tiradentes e íamos em outro ônibus até a Penha. (Isso porque era um trajeto longo, de uma hora e meia, pois quantas vezes para ir a solenes bailes de formatura a noite, no centro da cidade, tomávamos o bonde, transporte mais barato – só 200 réis – com vestido até o pé e, ainda por cima, rodados! Tranqüilas noites do Rio daquele tempo, na década de 40...). Mas, como ia dizendo, ao saltarmos do ônibus na Penha, esperávamos a cancela abrir, para atravessarmos a linha do trem, e enfim chegávamos. Isso tudo já vestidas de chita e mil laçarotes!
Penha! Quantas vezes, em minha meninice, subi os 365 degraus do morro do granito com minhas primas, porque meu avô, que nos acompanhava e que era um juiz muito pacato e com seu tanto de original, gostava de ler o jornal dos domingos no alto do penhasco, no grande páteo que circunda a igreja. Quantas vezes, também, quando esse vovô juiz ia visitar uma irmã na zona sul, voltávamos com ele de Copacabana até à Penha, duas primas levando seus violões, outra seu bandolim, e eu, minha guitarra portuguesa; e no centro da cidade, no trajeto a pé até a praça Tiradentes, ele sempre achava de parar para comprar um mundo de frutas, especialmente grape-fuits, que distribuía para nós ao subirmos no ônibus que ia para os subúrbios. Viajávamos em pé, atrapalhadíssimas, sobraçando instrumentos e grapes, mas nosso pacato juiz nem se abalava, ele mesmo carregado de outros tantos pacotes. Em geral, isso acontecia quando íamos tocar no Centro Cívico Leopoldinense, pois a Penha é um subúrbio da estrada de Ferro Leopoldina.
Estudávamos com um professor português, partituras manuscritas cuidadosamente por ele em plena aula, e tocávamos um repertório variado, que ia desde o “Tico-Tico no fubá” e “La Cumparsita” até a “Serenata” de Schubert.
O bandolim e a guitarra portuguesa faziam o solo, e os violões acompanhavam. Eu ficava encarregada de afinar os quatro instrumentos e de reger (disfarçadamente) o conjunto. Nosso professor era tão paciente conosco...
Ao me chamar, tirava o chiado carioca do ‘th’ do meu nome, e lusitanamente, dizia, rodando bem o R: Rutzinha!
Mas, voltando à célebre noite de São João, quando chegávamos à casa de minha tia, o quintal já estava todo colorido de bandeirolas, a fogueira já queimava forte e serviam-se todos os doces típicos feitos em casa, inclusive a indispensável batata-doce assada na brava. Meu tio dirigida a queima de fogos e, enquanto a criançada miúda brincava lá fora, nós, adolescentes dançávamos na sala com os primos e com nossos amigos do bairro, que vinham em geral empencados no taxi do seu Telmo, pai de um deles, o Telminho. O taxi do seu Telmo era antiguíssimo, desse que, além dos dois bancos usuais, tinha duas cadeirinhas dobráveis defronte do banco de trás. Eu adorava passear na tal cadeirinha. Os pais de Telminho iam sempre à festa, vários pais iam, e se divertiam tanto quanto nós.
Lembro-me de que, algum tempo depois, seu Telmo subiu na vida, deixou o taxi. Não o vi por muitos anos até que, um dia, quando eu já tinha meus quatro filhinhos, tomando um taxi no Rio, dei com seu Telmo no volante: “Seu Telmo! Sou eu! A sobrinha de dona Olga, lá da Penha! Mas o senhor, que lhe aconteceu?” “Ué, minha filha, a vida é assim, ora sobe, ora desce. E um belo dia a minha estrela se apagou.” – disse ele, rindo contente – “e estou de novo com meu taxi; Mas sabe que é disso mesmo que eu gosto?” Nunca mais vi seu Telmo. Vida acima, vida abaixo, sempre animado e alegre.
Na festa de São João de minha tia, não lembro se havia quadrilha. Acho que não. Mas havia variadas brincadeiras para nós, os “mais velhos”, inclusive o célebre bolo com uma aliança escondida em cada metade. Assim, uma metade era partida em fatias para os rapazes, e a outra, para as mocinhas. O par que encontrasse as alianças era conduzido ao cortejo de casamento, com a alegria simples daquela época. Ah, eu não vou me esquecer nunca da festa em que achei a aliança em meu pedaço de bolo e tive que ser a noiva. Pois não é que o noivo foi justamente o menino que, naquele tempo, era “os meus encantos”?! Tímidos, encabulados e emocionados, casamos de mentirinha, coroando a festa.
Hoje, fico pensando... Por que o casamento numa festa de São João? Seria o resultado semiconsciente de São João? Seria o resultado de uma sabedoria milenar? A de que São João representa o último dos profetas antigos, ligado a um estado de êxtase, de transe, e que abre caminho para o homem novo, o Cristo, que veio acordar o homem para a descoberta de seu Eu? Une-se assim o estado antigo – êxtase – ao novo – acordado. Ou seria porque a alma, escondida então na densidade da vida terrena, descobre que abriga em si o espírito e se une a essa descobre, para poder crescer? Hoje, fico pensando...
Ah, mas naquele tempo... Naquele tempo eu só queria saber de dançar, brincar e sair cantando:
Capelinha de Melão,
é de São João,
é de cravo, é de rosa
é de manjericão.
São João está dormindo,
não acorda não.
- Acordai, acordai,
acordai, João!
(Texto extraído da revista Nós)