Festas Cristãs

Pesquisar, Visualizar e Navegar

Tamanho da fonte:

Histórias

Cristóforo (Jakob Streit)

Atenção, abrir em uma nova janela. PDFImprimirE-mail


(Jakob Streit
História do original, em alemão, Ich Will Dein Bruder Sein)

Era uma vez um gigante que tinha tamanha força, que era capaz de arrancar um pinheiro com as raízes e tudo, usando apenas as próprias mãos. Seu nome era Óforo. Ele já havia trabalhado para muitos lavradores; entretanto, não costumava ficar muito tempo no mesmo lugar, pois quando terminava as tarefas, a falta do que fazer o aborrecia muito. Então, ele disse para si mesmo: quero procurar o mais poderoso dos senhores deste mundo e só a ele desejo servir; esse, com certeza, conseguirá fazer bom uso de toda a minha força. Portanto, Óforo viajou de reino em reino, de cidade em cidade, e em todos os lugares perguntava pelo mais poderoso dos senhores.
 
Finalmente chegou à corte de um rei. Um trabalhador lhe dissera ser esse o rei mais poderoso de todos os reinos, até os mais longínquos. Óforo se fez conduzir até o trono e ofereceu seus serviços. Quando o rei viu aquele gigante fortíssimo, disse: “Nunca precisei tanto de uma pessoa assim como justamente agora! Você será o maior e o mais forte de meus guerreiros; com você, todas as batalhas serão vencidas.”
 
Pois justamente naquele dia, o rei mandara chamar todos os soldados do reino. Precisava reunir um exército, porque o rei vizinho invadira o país, atacara uma cidade e a incendiara. Ele agora queria mandar um exército para contra-atacar. Mais que depressa, o ferreiro teve de forjear uma espada imensa para Óforo; porque todas as outras existentes no castelo eram pequenas demais para ele. No dia seguinte, o exército partiu para a luta, e o gigante seguia na frente.
 
Já no terceiro dia, chegou de volta ao castelo um veloz mensageiro e comunicou a notícia: “Coroem de flores as portas da cidade, coroem de flores a torre, pois nossos guerreiros venceram! Foi incrível ver Óforo lutando. Restou pouco para os outros soldados fazerem, pois diante dos golpes da espada do gigante o inimigo fugiu, embrenhando-se nas matas, dispersando-se nas montanhas: o rei invasor está morto.”
 
Logo repicaram os sinos de todas as torres da cidade. Portas e escadarias do castelo foram enfeitadas com flores. O rei ordenou que no salão principal se preparasse a mesa para comemorar dignamente a festa da vitória. Um harpista deveria cantar ao som de suas cordas, e os dançarinos de sabre foram chamados para mostrar o melhor de sua arte.
 
Ao anoitecer, o salão estava iluminado. Óforo sentou-se ao lado do rei. Quando o harpista tocou, entoou uma canção que falava do diabo. Despercebidamente, o rei fez sobre a testa o sinal de uma pequena cruz. Óforo notou o gesto e pensou: “Foi estranho isso que o rei fez.” A canção terminou e os convivas beberam alegremente de suas taças. 
 
Quando o rei perguntou ao gigante se a canção lhe agradara, este disse: “Houve uma coisa que eu estranhei, ó rei. Porque o senhor fez, repentinamente, um sinal sobre a testa?” O rei respondeu: “Sempre faço isso quando o nome do diabo bate em meus ouvidos; é grande seu poder neste mundo: “Óforo tornou a perguntar: “Então o poder do diabo é maior que o seu?” “Eu governo só o meu reino, mas o diabo tem poderes sobre o mundo todo.”- disse o rei.
 
Óforo nunca ouvira falar no diabo e imaginou tratar-se também de um rei. Então pensou: “Se existe alguém ainda mais poderoso que este rei, vou partir daqui e procurá-lo. É ao mais poderoso dos reis que desejo servir!”
 
No dia seguinte, embora o rei relutasse muito em deixá-lo partir. Óforo despediu-se e continuou sua caminhada pelo mundo. Durante todo o trajeto, perguntava sempre onde morava o diabo, mas ninguém conseguia responder. Algumas pessoas até se assustam com a pergunta, de modo que Óforo passou a sentir uma admiração cada vez maior pelo rei desconhecido.
 
Certa vez,quando o gigante atravessava uma sombria floresta, veio juntar-se a ele uma viajante de aparência muito estranha. Sua roupa era esverdeada, seu queixo terminava numa barbicha pontuda e seu chapéu era enfeitado por uma pena preta. Imediatamente, Óforo perguntou: “Caminhante, saberia me dizer onde posso encontrar o diabo?” “Ele caminha a seu lado. Sou eu mesmo.” – respondeu a figura verde. “É verdade que você tem poder no mundo todo?” “Sim é! – respondeu o diabo.” Diga-me, então, posso ser seu servo? Você tem trabalho pra mim?”- Óforo assim perguntava por não saber que as obras do diabo são obras malignas. “Eu sei de um trabalho, venha comigo:” – acenou-lhe o diabo, e saiu saltitando na frente, entrando no bosque.
 
Depois de terem caminhado por algum tempo, a criatura de verde parou junto de um grande pinheiro e ordenou: “Arranque-o!” Com um só puxão, Óforo arrancou a árvore da terra. Ele ainda teria de partir os galhos, mas já o diabo lhe fazia sinal de novo para que o seguisse, e ele obedeceu, carregando nos ombros o pesado tronco. Pouco tempo depois, saíram de dentro do bosque e chegaram a um lugar onde, há várias semanas, alguns homens muito diligentes construíram uma capela. Já tinham sido postas as vigas de cumeeira. E num pinheirinho ali colocado tremulavam fitas coloridas. Fora uma tarde de festa. Os operários haviam deixado o local; na manhã seguinte pretendiam pôr as telhas.
 
“Bata com bastante força!” – exclamou o diabo, apontando para a construção. E, quase que imediatamente, o grande tronco do pinheiro derrubou o vigamento do telhado e fez ruírem as paredes. Não ficou pedra sobre pedra.
 
“Sua primeira tarefa foi bem feita” – elogiou o diabo, e sorriu contente.
 
Óforo nada sabia fazer a não ser acatar as ordens do seu novo senhor, e assim continuou a segui-lo.
 
Quando, no dia seguinte, os trabalhadores chegaram, descobriram, com grande tristeza, que a capela havia sido demolida. “Isto é obra do maligno!” - exclamou um deles. “Vamos erguer uma cruz bem no caminho antes de reiniciarmos a construção; ela o manterá afastado”. No mesmo instante, fincaram uma cruz de madeira no meio da estrada que ia dar na capela. Voltando ao local de trabalho, cantaram e começaram de novo a construir.
 
Depois de algum tempo, quando o telhado já protegia aquele lugar sagrado, o diabo vinha voltando acompanhado de Óforo. O gigante, mais uma vez, carregava um tronco de pinheiro. O diabo seguia na frente. Ao se aproximar do cruzeiro, estremeceu, saltou de lado e fez um grande desvio ao redor dele. Admirado, Óforo estacou: “O sinal da cruz na testa, a cruz no caminho... Diga-me diabo, porque você saltou de lado?” “Não faça perguntas, apenas quebre o telhado. Veja, ele já está com as telhas em cima.” “Eu não darei nenhuma pancada enquanto você não me disser o que significa essa cruz:” “tenho de tomar cuidado” – disse o diabo – “Para não pronunciar seu nome.” “Será que é um nome tão perigoso que o próprio diabo precisa se proteger dele?” – perguntou Óforo – “Por acaso existe um senhor ainda mais forte que você?”
 
O diabo chegou então bem pertinho dele e sussurrou: ”Existe um que tem poder sobre a terra e no céu; não pergunte mais nada, vamos, bata com força!” Óforo, porém retorquiu: “Se existe um senhor que tem poder não só sobre um reino, não só sobre a terra, mas também no céu, então ele é o maior do reis, e é ele que quero servir.” Com essas palavras, o gigante jogou ao chão o tronco da árvore, bem em cima dos pés do diabo. Encaminhou-se então para a capela, deixando para trás o diabo, que saiu dali praguejando e mancando.
 
Bem cedo na manhã seguinte, chegaram os trabalhadores. Encontraram um tronco despedaçado no caminho e, dentro da construção, um gigante dormindo. As vozes dos operários o despertaram, e Óforo dirigiu-se a eles, que estavam muito espantados. Sem prestar muita atenção ao medo que pareciam sentir, apontou para o cruzeiro e perguntou: “Que rei é esse a quem pertence esse símbolo?” Os operários responderam: “Não sabemos explicar-lhe muito bem, preferimos construir a casa dele; mas siga em direção ao sol nascente por mais ou menos uma hora e vai encontrar um rio caudaloso. Entre os rochedos que ficam acima do rio, há uma caverna, e nela habita um velho, um eremita; ele com certeza saberá responder-lhe.”
 
Óforo pôs-se a caminho e encontrou tudo conforme lhe havia sido explicado. Escalou os rochedos acima do rio; uma trilha estreita indicou-lhe o caminho da caverna. Admirado, o eremita olhou para o gigante, que se postara diante de sua ermitã. “Que quer de mim?” Óforo respondeu: “Oh, ancião, diga-me onde posso encontrar o rei que tem poder sobre a terra toda e também o céu?” “Existem dois caminhos para encontrá-lo” – disse o velho - “o primeiro deles manda que você procure um lugar tranqüilo, como eu fiz; deverá alimentar-se pouco e ler as histórias da Sagrada Escritura.” “Esse não é o meu caminho” –  retrucou Óforo – “não sei ler e não gosto de ficar parado. Veja só meus braços tão cheios de força. Eles querem trabalhar!”
 
O eremita concordou com a cabeça e prosseguiu: “Ouça então qual o segundo caminho: você precisa com toda essa força, servir aos homens. Está vendo ali embaixo o rio caudaloso e largo? Nenhuma ponte o atravessa, e, no entanto são muitos os viajantes que, todos os dias, desejam passar para a outra margem. Desça até lá, construa uma choupana bem na beira da água e atravesse as pessoas, carregando-as em seus ombros fortes.”
 
“Isso eu farei com prazer!” – exclamou Óforo, agradecendo ao velho, e tornou a descer. Sua choupana foi logo construída ali na margem e, dali por diante, o gigante carregava os viajantes para o outro lado, a qualquer hora, sem jamais pensar em pedir pagamento. Se alguém lhe dava pão ou frutas, ele agradecia.
 
Passou-se o primeiro ano. Óforo subiu até o ermita e disse: “Ancião, o grande rei ainda não veio.” “Então prossiga por mais um ano. Ele logo virá.” E assim, ano após ano, Óforo subiu até o ermita, e o seu rei não vinha. Já era a sétima vez que o eremita o mandava descer de novo para a beira do rio; Óforo, porém não reclamava.
 
Numa noite tempestuosa, enquanto o vento bramia lá fora, Óforo em sua choupana, estava mergulhado em sono profundo. Repentinamente, despertou. Pareceu-lhe ouvir, bem nítida, uma voz chamando-o da outra margem. Levantou-se, agarrou seu possante cajado e enfrentou as ondas que bramiam. Mas, na outra margem, não encontrou ninguém para ser carregado; apenas o vento assobiava forte por entre o arvoredo. “Será que, dormindo o que ouvi foi o vento a uivar?” – pensou ele, e foi deitar-se de novo na choupana.
 
Mal havia adormecido, acordou sobressalto. Ouvira nitidamente uma criança chamando. Mais uma vez, Óforo atravessou as águas. As ondas já não estavam tão altas, e também o vento serenava um pouco. Mas na outra margem não havia absolutamente ninguém. Ele chamou, e não houve resposta.
 
“Que estranho” –murmurou para si mesmo – “eu ouvi alguém chamando.” Nada mais lhe restava a fazer senão voltar, deitar-se na choupana e dormir.
Pela terceira vez, ele despertou. Lá fora, as ondas e o vento se haviam calado. Uma voz clara como cristal chamava: “Óforo, carregue-me para o outro lado!” saindo da choupana, enxergou um clarão de luz, que vinha da outra margem na sua direção. Ele teve a impressão de ver, dentro desse foco de luz, uma criança esperando. Óforo começou a atravessar a correnteza e agora via claramente que a delicada figura estava totalmente envolta pela luz.
 
Atingindo a outra margem, ele se inclinou diante da maravilhosa criança e a pôs nos ombros cuidadosamente. Tornado a atravessar a correnteza, Óforo começou a sentir que a criança ia ficando cada vez mais pesada. A cada passo, mais ele precisava dobrar os joelhos. E também no vento e as águas voltaram a bramir; as ondas altas batiam em suas vestes e em sua barba. No meio da correnteza, seus joelhos se dobraram, e ele teve a sensação de que o mundo todo lhe pesava sobre os ombros. Pensou que fosse afundar e, então, ergueu a cabeça e disse, desalentado: “Oh, criança, como você é pesada!” e a resposta veio do alto, cristalina: “Óforo, você carrega bem mais do que o mundo, pois carrega aquele que o criou.” E, quando ele ergueu o olhar, divisou uma sublime figura luminosa. Seu semblante refulgia como o sol, e uma coroa de estrelas circundavam de raios sua cabeça. Era Cristo, o Senhor, e Ele lhe disse: “Você esperou por mim durante sete anos e serviu fielmente aos homens. Portanto eu o batizo com meu nome: de ora em diante você se chamará Cristóforo. Junto á sua choupana, finque o cajado na terra; quando, da madeira ressequida, brotarem folhas verdes, você estará comigo!”
 
A luz desapareceu; o peso nos ombros também. E as estrelas voltaram a brilhar normalmente. Cristóforo levantou-se, caminhou para a choupana e fincou seu cajado bem fundo na terra. Três dias depois, em vão as pessoas chamaram pelo gigante para carregá-las até a outra margem. Quem chegou até a choupana encontrou junto à porta, fincado na terra, o cajado do gigante totalmente recoberto de folhas verdinhas. Altas vozes chamaram por seu carregador, mas ele não apareceu. Dentro da choupana, encontraram seu corpo sem vida, deitado no chão.
 
A notícia se espalhou, e vieram pessoas de perto e de longe, e choraram a ausência do bom servo que, tanto de dia como de noite, as transportara para a outra margem por tempestades e vendavais. Um mensageiro subiu até a ermita para contar ao eremita o sucedido. O ancião meneou a cabeça, dizendo: “Deitem o gigante numa sepultura; Cristóforo encontrou o maior dos reis; mas eu ainda preciso esperar...”
 
 
(Texto extraído da revista Nós, Época de São João 2005, da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo)