Textos Diversos
Considerações sobre a Festa da Ressurreição (Christa Glass)
O Cristianismo, com suas tradições, festas e cerimônias, chegou ao Brasil através dos colonizadores europeus. As datas nos quais são celebrados os momentos marcantes do Cristianismo, no entanto, não são, como sabemos, datas históricas comprovadas por documentos, colocando-se, então, a pergunta: quais os critérios utilizados pelos representantes da fé cristã para a definição dessas datas?
Certamente, não foram escolhas arbitrárias. Buscando uma forma pela qual o Cristianismo pudesse penetrar mais facilmente na alma do povo, os representantes do Cristianismo inseriram as festas cristãs em datas de celebrações pagãs, cujos rituais geralmente demonstravam a gratidão aos deuses por suas dádivas a cada estação do ano, em um apelo a algo já conhecido e existente na alma do povo. Na primavera do hemisfério Norte, por exemplo, ocorriam as festas e rituais em celebração ao “renascimento” da natureza, depois de uma época em que tudo parecia ter estado morto debaixo de um manto de neve. Dessa forma, a alegria com o rebrotar da natureza ao mesmo tempo celebraria a ressurreição de Cristo. O Natal foi inserido, como cerimônia do nascimento de Jesus, em uma época em que, na antigüidade, ainda se sabia das 13 noites santas em que a Terra, em pleno inverno, estaria especialmente aberta para receber impulsos espirituais (no calendário atual, esse período vai de 24 de dezembro a 6 de janeiro). A festa de São João, que ocorre no verão do hemisfério Norte, coincide com os rituais de celebração do sol, que, com seu calor e sua luz, mantém a vida e impulsiona o seu brotar, o seu crescer e o seu amadurecimento na Terra. A fogueira fazia parte dos rituais desta festa.
Até hoje, certas tradições pagãs ainda são preservadas nas festividades cristãs, como o coelho e o ovo de Páscoa, a árvore de Natal e a fogueira de São João. O dia 24 de dezembro também é o dia de Adão e Eva, e o pinheiro enfeitado com maçãs vermelhas, que depois foram substituídas por bolas de vidro e outros enfeites “sem sentido”, representa a árvore do fruto proibido no paraíso. A tuia, ou seja, o pinheiro, é conhecida como a árvore da vida por ser a única a se manter verde no inverno. Portanto, podemos encontrar uma vasta simbologia, totalmente esquecida ou desconhecida atualmente, nas tradições das festas cristãs.
E nós, como devemos lidar com essas tradições originárias da realidade da natureza do hemisfério Norte, que não tem a ver com o verdadeiro impulso trazido por Cristo?
Há uma palestra proferida por Rudolf Steiner em 19 de abril de 1924 em Dornach, a primeira de um ciclo que leva o titulo de “A festa da Páscoa como parte da história mística da humanidade”, onde ele expõe que, na realidade, a Páscoa é uma festa outonal e não primaveril. Segue-se a tradução livre de alguns trechos desta palestra:
“A festa da Páscoa é vivenciada por muitas pessoas como tendo, de um lado, uma grande relação com profundos sentimentos e sensações da alma humana, e, de outro lado, relacionando-se com segredos e enigmas do cosmo. Temos que estar atentos à relação que a festa pascoal tem com os mistérios do cosmo, justamente por ser a Páscoa uma festa móvel, fixada de acordo com certas constelações astronômicas. Também é necessário observarmos como, no decorrer dos séculos, tradições e rituais cúlticos foram se ligando à Páscoa(...)
A festa da Páscoa é a festa da ressurreição, mas ela também nos leva a épocas bem anteriores à vinda do Cristo. Leva-nos a festejos do equinócio da primavera, onde o dia e a noite tem a mesma duração, onde ocorre o acordar da natureza e que é o ponto de referência para a fixação da data da festa da Páscoa.
No Cristianismo, festeja-se a ressurreição de Cristo; a festa pagã correspondente celebra uma espécie de ressurreição da natureza. Aqui, chegamos a um ponto onde podemos ver que a Páscoa cristã, quanto ao seu significado mais profundo, não tem nada a ver com o fato de dia e noite terem exatamente a mesma duração na primavera, mas sim com as festas e rituais pagãos festejados no outono. O mais notável em relação à fixação da data da Páscoa, quanto a seu sentido e à sua relação com certos mistérios antigos, é que ela nos mostra justamente o grande engano que aconteceu na concepção do mundo em relação à compreensão dos fatos mais importantes do desenvolvimento da humanidade.
O que aconteceu de fato é que a festa da Páscoa que, conforme seu sentido, é uma festa outonal, foi confundida, nos primórdios do Cristianismo, com uma festa primaveril. Isto demonstra um grande equívoco ocorrido no decorrer do desenvolvimento da humanidade, O essencial, o que se situa no centro da consciência cristã, é que Jesus Cristo passou pela morte na Sexta-feira Santa e permaneceu no reino da morte por três dias, período no qual, como sabemos, ocorreu sua união com a Terra. Este tempo é celebrado em luto. O Domingo é o dia em que o Ser central do Cristianismo ressurge.
Observamos agora uma festa pagã correspondente para compreendermos a ligação da Páscoa com os mistérios antigos. Em muitas culturas pagãs, encontramos celebrações que mostram, em sua expressão, uma forte semelhança com a Páscoa cristã.
Para exemplificar, vamos escolher a festa de Adonis, celebrada por povos da região da Ásia Menor bem antes da vinda de Cristo. A figura central era uma estátua de Adonis, o representante espiritual do que se expressa como beleza e força da juventude no homem. Acompanhada por cânticos e rituais de profundo pesar e sofrimento, esta imagem era levada para um lugar onde houvesse água (o mar, um lago natural ou um lago artificial, criado exclusivamente para os procedimentos do ritual). A imagem era mergulhada na água, onde permanecia por três dias, período onde as pessoas ficavam de luto, muito sérias e silenciosas. Passados os três dias, Adonis era retirado das águas e os cânticos de luto se transformavam em hinos de louvor ao deus ressurreto.
Estas cerimônias mostravam, exteriormente e em forma de rituais, o que acontecia nos centros de mistério no processo de iniciação. A pessoa que estava a caminho da iniciação era levada a um cômodo de paredes pretas onde estava um caixão ou algo parecido. Cânticos de luto eram entoados ao pé do caixão pelos acompanhantes da pessoa em processo de iniciação, onde, por três dias, ela vivia as experiências, como um moribundo, de tudo que se passa ao se transpor o portal da morte. Todo o seu preparo anterior a levava a realmente vivenciar o que ocorre nos três primeiros dias após a morte. Ao final desse período, aparecia diante da pessoa no caixão um ramo verde, simbolizando o brotar da vida, e os cânticos de luto se transformavam em hinos de louvor e alegria. O iniciado adquiriu uma nova consciência, aprendeu uma nova linguagem espiritual.
O ritual de Adonis acontecia no outono, e aos participantes era explicado: “Vejam, estamos no outono, e a natureza perde seu ornamento vegetal, tudo está murchando. No lugar do verde que rebrotará na primavera, a neve irá cobrir a terra, e a natureza morre. Enquanto tudo ao redor perde a vida, vocês devem vivenciar de forma parecida o que ocorre com o homem quando ele passa pela morte. Vocês devem se lembrar que o homem, ao passar pelo portal da morte, se desfaz de tudo que é terreno e se esvai pelo éter do universo. Ele se sente crescendo, sente como se o mundo todo fosse seu. Ele se esvai durante três dias pelo universo, enquanto os olhos terrenos observam a imagem da morte, o que morre é passageiro e a alma humana acorda, após três dias, no mundo espiritual. Ela se eleva ao além, após três dias seguidos à morte, para nascer no mundo espiritual.”
Há muitos outros aspectos interessantes nessa palestra para nós, que vivemos a Páscoa no outono. Mas creio que o aqui exposto possibilita o entendimento das idéias fundamentais a fim de repensarmos nossas tradições para a Festa da Ressurreição. Nesse sentido, nossa natureza outonal nos traz um símbolo maravilhoso no processo de transformação da lagarta, um ser pesado, terreno, que só se preocupa em encontrar alimento e crescer fisicamente, para, de repente, se recolher e se transformar em uma crisálida ou começar a tecer um casulo, dentro do qual acontece uma grande mudança. Não se trata de um processo de transformação ou metamorfose. Trata-se de uma dissolução da forma e da matéria anteriores para o surgimento de um novo processo formador que termina na criação da borboleta ou da mariposa, com suas asas coloridas ou desenhadas com formas fantásticas, um ser que agora vive no elemento aéreo, irresistivelmente atraído pela luz.
Cada vez mais os professores e jardineiras que seguem a pedagogia Waldorf estão assimilando e vivenciando esse milagre da natureza e usando-o convictamente com seus alunos, como símbolo da ressurreição de Cristo, dando-lhe mais importância do que à simbologia primaveril do coelho e do ovo.
Certamente a nossa natureza e a nossa realidade geográfica poderão trazer elementos que possam servir como símbolos adequados também para outras festas cristãs. No ano passado, por exemplo, descobri na natureza um símbolo maravilhoso para Pentecostes. É em torno desta época que começam a amadurecer os frutos do pinheiro do Paraná (araucária), os pinhões. A pinha da araucária é uma grande bola pendurada nas extremidades dos galhos, formada de dezenas de pequenos “gomos” (pinhões) bem juntinhos. Os discípulos de Cristo, depois do Mistério do Golgota, atônitos e assustados com os acontecimentos, amedrontados pela perseguição, mantinham-se unidos sem coragem de se mostrarem ao mundo. Cinqüenta dias depois da Sexta Feira Santa, vem a eles o Espírito Santo, a luz espiritual da compreensão do Mistério do Golgota, e eles saem corajosamente para divulgar e espalhar o Cristianismo pelo mundo. Assim também a pinha, amadurecida pelo calor e pela luz solar, se rompe como uma explosão, jogando para longe os pinhões, as sementes para uma nova vida.
Quem sabe você também faz uma dessas descobertas na natureza, que possa trazer um significado simbólico enriquecedor para as nossas festas cristãs? Se você descobrir, conte para “Nós”.
(PS. O ciclo de palestras mencionado acima está à disposição em português, na Sociedade Antroposófica)