Histórias
Nascido em 24 de Dezembro de 1945
Foi naquela noite fria e escura. Foi em Vicovice, Polanka, ou Rosno, numa cidade tcheca. Quem se lembra ainda hoje do seu nome? Há tanto tempo...
Mas aí. Em seu documento de identidade devia constar aquela cidade que nunca mais reviu. Onde será que veio parar essa criança, cuja mãe faleceu antes que tivesse informado de onde veio? Uma criança; uma criança recém – nascida num pronto-socorro militar tcheco, no meio de organizantes e feridos graves, desesperados e esperançosos, guardados por soldados. No meio da fome, do frio, uma criança recém-nascida naquele primeiro inverno pós-guerra. Tinha essa guerra realmente chegado ao fim?
E então faleceu a mãe, de quem nada se soube, apenas isso: que se chamava Maria. Muitas mulheres se chamam Maria do Leste. Uma jovem mãe, quase que menina, veio a dar á luz seu primeiro filho, um menino, e por ter sido na véspera de Natal, 24 de Dezembro, deu-lhe o nome de Cristiano. Mas não só por isso. É que essa criança, de quem ninguém mais teve notícias, veio a tornar-se a criança do presépio - por uma hora, a salvação do mundo.
Os homens que ali estiverem- não restam mais muito deles- ainda falam às suas respostas daquela noite de Natal em Vicovice, Polanka ou Rosnova; continuam, no fundo, procurando essa criança. Em seu documento de identidade deve constar a data de 24 de Dezembro de 1945.
Se é que ainda está viva – continuam pensativos – se é que ainda vive, que será dela? será dos outros? – por exemplo daquele que segurou a ovelha e que era enfermeiro; sabia falar tcheco e se entendia bem com os moradores. Essa ovelha que estava conosco era importante; é que através dela fomos reconhecidos como pastores vindos dos campos, você entende? “...é guardavam à noite seus rebanhos”, pois vínhamos dos campos, de todos os lados parar no carneiro, já que logo não precisaria mais dela, e nela deitou aquela criança. Ela também estava lá; todos nós estávamos lá: os agonizantes e os feridos graves e também as duas enfermidades que não quiseram ser anjos. Inicialmente iriam ser anjos. Chegaram até a tirar a touca do cabelo; elas riam. Mas então algo deve ter acontecido: não eram anjos e, mesmo uma noite como essa não era capaz de transformar e salvar uma moça. Ficaram junto com os pastores, colocaram-se ao lado da ovelha e uma delas segurou a lanterna ao apagar a vela. A jovem mãe Maria chorou. No seu colo e aos seus pés estavam um pão, um pedaço de toucinho e um cobertor de lã; incenso, mirra e ouro também para essa criança:
Não eram reis os que se aproximaram da criança, mas parecia que se haviam tornados magos. Os magos do Oriente. Tinham vindo do Leste e uma estrela “nada santa”os havia guiados para onde estavam agora. Esperavam que uma boa estrela brevemente os guiasse para casa. Estavam vestindo japonas forradas do exército; um tinha o braço enfaixado, outro só tinha uma perna e um terceiro usava um curativo sobre a vista que perdera; era o mais novo entre eles. O mais velho tomou o lugar ao lado de Maria; chamava-se José, como muitos. Bem que poderia ter sido o pai dela; por certo a teria protegido por mais tempo do que apenas essa noite. Quis leva-la consigo, ela e a criança. Terminou a guerra e certamente seria logo dispensado, velho e doente como estava. Com ela pretendia retornar para casa e formar um novo lar. Ela não sabia disso, pois tomara essa decisão ao ver a criança à luz da lanterna.
Não era uma apresentação de presépio com canções natalinas. Ninguém cantou. Não houve espectadores.
Tudo começou com essa criança. Em hora adiantada da manhã ouviu-se o choro; primeiro um o escutou e, tendo chamado a atenção dos outros, todos o ouviram. Uma criança recém-nascida em qualquer parte do pronto-socorro militar, escondida das sentinelas tchecas. Isto queria dizer que, enfim, não haviam mandado a mulher embora. Á tarde, a enfermeira, a mais nova das duas, levou a criança nos seus braços, de sala em sala, exclamando: Uma criança! Vejam só, uma criança! Participara da guerra durante três anos; há três anos que era enfermeira, mas nunca havia carregado uma criança recém-nascida em seus braços. Apenas conhecia feridos e mortos. Numa das salas exclamo: “Vejam! Uma criança nos nasceu!” – Não sabia que acabava de pronunciar as palavras do Evangelho. Quem sabe, nunca as tivesse ouvido alguém pronunciar. Ela chorava, pois aprendera há questão de uma hora que uma criança significa amor e que tudo o que sabia até então do amor era errado, pois a criança significa amor e amor é criança. Ninguém achou graça. Viraram as cabeças, puxando os cobertores cinzas mais para cima, a fim de que ninguém percebesse a emoção. Aí chegou uma das sentinelas. Pretendia afugentar a enfermeira da sala. Mas ela sorriu e lhe estendeu também a criança. Nenhuma árvore, nenhuma luz, nenhuma carta e nenhum pacote de casa. Pior que durante a guerra. Então, a criança chorou e ninguém soube mais tarde dizer como tudo começou. Um falou ao outro: ela chama-se Maria. E isso passava para o próximo leito. Ela não está passando bem. Talvez não resista. Aí, já era uma hora mais tarde; a sopa já tinha sido servida, a lâmpada em cima da porta queimava sua luz azulada, à luz da qual não se podia ter cartas.
Algum tempo depois levantaram-se; colocaram sua japonas ou casacos, tendo um ajudado o outro a se vestir. Queriam ver a criança. Queriam ver uma mulher que acabava de dar à luz uma criança. Cada um tomou seu lugar; uns como pastores, outros como Reis Magos, e um como José. Tentaram também, sem jeito, gracejar, porque um deles se chamava “Boi” e tive de ficar ao lado da ovelha. Trouxeram o que mantiveram escondido dos olhares dos companheiros e das sentinelas debaixo dos colchões. De um lado estavam os feridos e do outro lado as sentinelas, apoiando-se, primeiro, em suas espingardas e colocando-as, finalmente, no chão aos pés da criança. A jovem Maria sorriu, as faces coradas de febre, os olhos brilhando e o cabelo solto e loiro em volta da cabeça. De tudo isso nada mais entendia; apenas sabia seu filhinho agasalhado e seguro; não temia mais nada; sorria no sono e na febre.
Foi realmente alguém quem pronunciou as palavras: “Paz na terra...? Todos juraram que as ouviram. Nessa hora todos viram a salvação do mundo: os Reis, que não eram Magos, os pastores, o homem que segurava as pernas da ovelha para que não perturbasse, a enfermeira que segurava a lanterna e o homem que quis seu um José e que cedeu sua japona porque sabia que a criança precisava dela mais do que ele.
Na véspera de Natal, quando os filhos já estão dormindo em suas camas, os homens que estiveram naquela noite fria e escura em Vicovice, Polanka, Rosnova ou como tenha se chamado aquele lugarejo – contam essa história às suas esposas. E então elas perguntam: E quem foi você? – Eu? Eu fui aquele com a ovelha, respondem eles. Eu fui um dos Reis Magos do Oriente trazia comigo uma bengala inteira de pão.
É mesmo? Perguntam as mulheres. Você foi um dos Reis Magos? Você foi aquele com a ovelha? Você foi aquele José? E riem incrédulas.
É difícil contar esta história. De ano para ano está ficando mais difícil.