Textos Diversos

Época de João (João Guimarães Rosa)

Imprimir



“Sei irmãos, que todos já existimos, antes, neste ou em diferentes lugares, e que o que cumprimos agora, entre o primeiro choro e o último suspiro, não seria mais que o equivalente de um dia comum, senão que ainda menos, ponto e instante efêmeros na cadeia movente: todo homem ressuscita ao primeiro dia.
 
Contudo, às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte, imperfeita e temporária, no próprio decurso da vida. Morramos, morra-se, outra palavra não haverá que defina tal estado crucial. É um obscuro finar-se, continuando, um trespassamento que não põe termo natural à existência, mas em que a gente se sente o campo de operação profunda e desmanchadora, de íntima transmutação precedida de certa parada; sempre com uma destruição prévia, um dolorido esvaziamento; nós mesmos, então, nos estranhamos. Cada criatura é um rascunho, a ser retocado sem cessar, até a hora da libertação, a além do Lethes, o rio sem memória. Porém, todo verdadeiro passo adiante, no crescimento do espírito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio de trevas; a passagem. Mas, o que vem depois, é o renascimento, um homem mais real e novo, segundo referem os antigos grimórios. Irmãos, acreditem-me.
 
Não a todos, talvez assim aconteça. E, mesmo, somente a poucos; ou, quem sabe, só tenham noção disso os mais velhos, os mais acordados. O que lhes vem é de repente, quase sem aviso. Para alguns, entretanto, a crise se repete, conscientemente, mais de uma vez, ao longo do estágio terreno, exata regularidade, e como se obedecesse a um ciclo, no ritmo dos prazos predeterminados, de sete em sete, de dez em dez. no demais, é aparentemente provocado, ou ao menos assinalado, por um fato externo qualquer: uma grave doença, uma dura perda, o deslocamento para lugar remoto, alguma inapelável condenação ao isolamento. Quebrantado e sozinho, tornado todo vulnerável, sem poder recorrer a apoio algum visível, um ser vê compelido a esse caminho rápido demais, que é o sofrimento.
Tenhamo-nos pena, irmãos, uns dos outros, reze-se o salmo Miserere. Todavia, ao remate da prova, segue-se a maior alegria”.


(Texto extraído da Revista Nós Época de São João 2009, da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo)
Comentários (0)