Textos Diversos

A VÉSPERA DE SÃO JOÃO

Imprimir


A comemoração do Precursor Evangelista, festa litúrgica em toda a cristandade e do calendário popular em Portugal e no Brasil, já era comemorada no século XV. Vemos desfilar as primeiras cavalhadas de São João, nas ilhas dos Açores, ao rufar de tambores e espoucar de fogos de artifício.
 
Com o tempo, essas festas foram enriquecidas por superstição as quais desceram das suas origens religiosas em conseqüência do desejo, que o ser humano sempre teve, de conhecer o futuro. Nas terras de além mar, onde perduram os augúrios e encantamentos, assim como no Brasil, onde lhe foram acrescidas lendas e contribuições dadas por novas raças, as adivinhações e sortes agitaram os sonhos das sinhás e das jovens casadouras.
 
Conforme diz Mello Morais Filho, em seu livro FESTAS E TRADIÇÕES POPULARES DO BRASIL, dedicado, entre outros, aos doutores cujos nomes conhecemos, Cândido Barata Ribeiro e Moura Brazil, editado nos tempos em que se escrevia “physionomia”, e “intelligencia”, “gyrasões”, “abrindo uma janella às tradições e a porta à gente antiga”, vamos ver o quanto nos resta da fé e dos costumes das Festas de São João.
 
Para as festas de São João, eram múltiplos os costumes tradicionais. Havia lugares, no Rio de Janeiro, onde São João Batista era comemorado do modo mais estrondoso e fidalgo. Os grandes fazendeiros, a burguesia abastada, o proletariado que adquiria posses, todos enviaram convites a festa. O mastro com a figura de santo, espigas de milho, laranjas e outras frutas, indicava o festejo no local, nos dias anteriores, mas, próximos da data. As chácaras, tanto quanto os palacetes, chamavam a atenção dos vizinhos com o mesmo sinal.
 
Já antecipadamente, viam-se nas ruas pretos ganhos com cestos carregados de foguetes e fogos de todo gênero, de canas e batatas doces, de cara e milho verde, de galinhas, ovos e perus, de tudo enfim que dizia respeito aos festejos da data, incluindo os ricos jantares e ceias que então se davam.
Os fazendeiros não faziam economia, vestiam os escravos com roupas novas, mandavam matar reses em obséquios aos nobres convidados da corte. Nos lares, em vários lugares da cidade, os pais de família colocavam sobre a grande mesa os livros de sorte, preparavam a lenha para a fogueira, trocavam as cordas dos violões que seriam usados para acompanhar as cantigas.
 
Os fogos diversos, tais como rodinhas, busca-pés, chuveiros, foguetes, rojões, traque de sete estouros, bombas, abarrotavam as mesas, entupiam as mangas de vidro(aquelas que são colocadas no lampião para evitar a fumaceira) e atravancavam as gavetas.
 
Ao mesmo tempo as donas de casa apressavam as escravas que ralavam milho verde e coco para a canjica e bolos de São João. Havia também as bebidas, preparadas com antecedência e colocadas ao sereno. E os tantos, tantos docinhos...
 
Na ante-véspera, as moças reuniam-se à luz do candeeiro e as crianças sentavam-se junto da avó que, rolando nos dedos as contas do rosário, narrava, sentada numa cadeira ou numa esteira, a lenda do Batista e das fogueiras.
 
Essas histórias eram conhecidas de todos, gerações e mais gerações deram-lhes créditos e se deliciaram com elas. Uma delas, e bastante nossa conhecida, a outra poderá nos encantar de hoje em diante!
 
“Um di, Nossa senhora, que trazia a Nosso Senhor Jesus Christo, foi visitar a sua prima Isabel, que também trazia em seu bendito seio a S. João Batista. Apenas as duas sagradas primas se avistaram, o divino Baptista, que não tardava a nascer, se ajoelhou em adoração a Jesus. Santa Isabel, que isto sentira, não tardou em comunicar o milagre à Virgem, que, exultando, perguntou-lhe – “Que sinal me dareis, quando nascer vosso filho?”– Mandarei plantar nesta montanha um mastro com uma boneca e ascender em torno de uma fogueira”, respondeu-lhe.
 
E de feito, na véspera de São João, a Mãe de Deus, vendo de sua morada uma fumacinha, labaredas e o mastro, partiu, indo visitar santa Isabel.
Desde então e que se festeja o santo com mastro e fogueira.

E vem a continuação da história “meses depois, quando Santa Isabel cantava, ninando o seu bendito filho, este lhe perguntou” Minha mãe, quando é meu dia?”– “Dorme, meu filhinho, dorme, logo que ele for eu ti direi”. E São João dormiu. Acordando, porém na noite de São Pedro, e ouvindo foguetes e vendo fogueiras acesas, insistiu, - “Minha mãe, quando é meu dia?”- “O teu dia já passou”, acudiu-lhe ela. – “ora, mina mãe, por que não me disse que eu queria brincar na terra? Santa Isabel tinha razão em nada dizer, se São João descesse do céu, o mundo se arrasaria em fogo!”
 
Assim que escurecia, os primeiros fogos riscavam os céus, as cabeças de alcatrão esfumaçavam nos postes das porteiras, indicando o local da festança, os busca-pés corriam atrás dos passantes, reluzindo e estourando. As fogueiras ardiam nas chácaras, nos quintais e nos grandes pátios das fazendas. Nos sobrados, começavam o combate das pistolas, ao mesmo tempo que das janelas e das sacadas formava-se cascatas de fogo. Ao longo dos caminhos, escutava-se o ruído inconfundível de cartas de bichas que estouravam dentro de potes de barro e barricas cobertas, colocados à distância pelos moradores do quarteirão. Numa casa pequenina, a mãe segurava na mão de uma criança, sacudindo a vareta em cuja ponta uma rodinha virava loucamente cuspindo fogo.
 
Na totalidade das casas e das fazendas, o trono de São João deslumbrava com suas luzes e flores, sobre uma toalha branca, alvíssima, pregava nos cantos do altar com laços de fita.
 
Na roça, as fogueiras tinham no centro ou um mastro ou uma árvore que estalavam enquanto ardia. Os escravos e as escravas batucavam em volta do fogo assando batatas doces e caras. Assim nasceram os diversos ritmos brasileiros, que alcançaram os salões, onde imperava a música da corte de França, graças a atitudes, nem sempre bem recebidas e aceitas, de pessoas que uniram conhecimentos tradicionais de música erudita com a sensibilidade da nova alma brasileira. Chiquinha Gonzaga exemplifica bem esse importante passo.
 
Enquanto a fazendeira, atenciosa e distinta, mandava servir aos convidados pires de canjica, manjar, roletes de cana assada e bolos de São João, as moças soltavam pistolas de lágrimas, craveiros de chuva de ouro ou, agrupadas em volta das massas, deitavam dados, liam as quadrinhas da sorte, rindo diante de um versinho assim:

Um velho torto e pançudo,
De nariz de palmo e meio,
Há de ser o teu consorte
Mui breve, segundo creio.

Os negros despejavam carros de milho, caras, canas verdes, na fogueira e os moços e moleques pulavam a fogueira, gritando, quando chegavam no alto – Acorda João!
Muitos dos festejantes cantavam então:

São João está dormindo, Não acorda não! Dê-lhe cravos, dê-lhe rosas e manjericão!

Nessa noite, nas grandes cidades, nos campos, nas chácaras, nas grandes fazendas, um pouco antes da meia-noite, aos clarões da fogueira, abriam-se, sem receio, as superstições que o tempo guardaria de séculos anteriores em louvor a São João plantar um dente de alho, se amanhecia grelado, obtinha-se o que se desejava.
 
Um copo cheio de água passado, em cruz, sobre a fogueira, quebrava-se dentro do líquido um ovo, clara e gema. De manhã, se apareciam os traços de um navio, isto significava viagem, se a forma era de igreja, significava casamento, se um caixão, enterro.
 
De um outro copo, também passado sobre a fogueira em louvor a São João, as moças solteiras tomavam um bochecho e colocavam-se atrás da porta da rua, com a boca cheia, o primeiro nome de homem que ouvissem pronunciar, seria o nome daquele que viria a ser seu marido.
Aos primeiros raios do sol, tomava-se o banho de São João, que tinha propriedades de cura.
 
Fechemos, a gora, as janelas do passado. Nas nossas cidades já não cabem as folias, as fogueiras, mas, as histórias cabem sempre e, relatar à juventude os costumes, os hábitos da cultura brasileira em sua aurora, permitem que os jovens compreendam melhor os passos evolutivos da cultura moderna e abram os olhos para valores imutáveis.
 
(Texto extraído da Revista Nós, Época de São João 2003, Escola Waldorf Rudolf Steiner, São Paulo) 

Comentários (0)