Histórias
Conto de Natal (Luiza Lameirão)
Tudo estava seco, esturricado, as folhas ressecadas, quebradiças rolavam no chão batido, rachado pela seca. Os bichos que se mantinham vivos procuravam as poucas sombras das árvores que ainda retinham suas folhas. Buscavam algum frescor... Entre as velhas e magras galinhas; um gato esquelético Cego de velhice; a cadela bolinha agora tão magricela não mais merecia este nome... os primos João e Ana que procuravam em vão uma frutinha silvestre: pitanga, amora para adoçar a boca ou, pelo menos, diminuir o amargo que há dias sentiam por falta d’água e de alimentos frescos...
Mas, era de manhãzinha hora afortunada, hora de sorte não de um por ele mesmo, mas de dois ou mais por todos!... Os meninos calados lembravam-se das gotinhas d’água penduradas nas cercas ou deitadas nas aveludadas pétalas das flores ou escorrendo rápida pelo rosto e caindo da ponta do nariz no tempo das chuvaradas de verão... e correr pelas enxurradas então!
Cismavam tanto que pareciam esperar, mas esperar o que? Se há meses não chovia e nada de chegar o tempo das águas! Recordavam também das rezas que avó ensinava sentada cada noite na beira de suas camas: “as rosas no vale a florescer veremos e o Menino Jesus conosco teremos!” De repente, parece que ouviram periquitos, periquitos maracanãs em sua algazarra matinal, assanhados, barulhentos e os despertam: “Será que já tem milho nas roças?”, exclamou João.
As roças! Sim, seus pais trabalhavam nelas de sol a sol – agora mais ainda elas precisavam ser cuidadas, diziam eles cada manhã ao saírem antes do dia clarear com seus embornais leves quase vazios, pois a comida estava escassa e a água mais ainda. Capinavam ora o milharal, ora o cafezal e sentavam-se a sombra dos bambuzais para comer, beber e descansar. Neste tempo então se ouvia causos dos tempos que seus avós e bisavós passaram por venturas e desventuras, fartura e penúria de grandes ou fracas colheitas... todas de um lugar onde alguém entre eles já vivera, lugar este: “Onde se ouvia o som da vida: do enxadão batendo a terra tirando mudas para replantá-las, das galinhas ciscando seguidas de toda prole... pintainhos piando... Onde se via as cores da vida: o viço do verde brotante, os cachos amarelos balançando-se à brisa, os frutinhos vermelhos cobrindo os pequenos arbustos, os lindo botões da sempre querida rosa cor-de-rosa, dos cachos e mais cachos de banana mostrando seus frutos granados fora as pele de seu coração... Onde tudo era cuidado com singeleza, sem nenhum requinte! Sem contar o lado perfumado dos manacás, moitas roxa brancas convidando a ficar lá! Quanta saudade das crianças brincando no areão fino daquele chão – diziam os velhos e poder alimentá-los com os frutos do mesmo chão”.
Estas histórias agora pareciam sonhos tão longe estavam do que se passava: tanto menino ao abandono.
Um olhou para o outro e num pacto surdo silencioso resolveram ir até lá, melhor que passar o dia sem mais ninguém para prosar e nada para preparar.
Saíram como se fosse possível, com a leveza e agilidade de seus passos, logo este lugar encontrar.
Enquanto caminhavam mal trocaram duas ou três palavras... a esperança impedia de titubear de quando em quando davam um golinho na água da cabacinha que cada um trazia pendurada de atravessado sobre o peito como um embornal. Era o único frescor naquele caminho sem mina, bica ou sequer gota de orvalho. Outras trouxas não traziam; ansiavam logo chegar.
Chegaram à tardinha a um pequeníssimo povoado à beira mar. O casario muído estava todo branquinho recém caiado, como que enfeitado para alguém saudar.
Diante da primeira casinha um roseiral em flor exalava suave perfume. João pára parecendo nada enxergar! No fundo do quintal via-se um milharal que acabara de pendoar e que não estava granado para comer só para passarinho bicar, exigindo cuidados da velha senhora, dona da casa que já saíra à janela com a aproximação das crianças. Ana tenta falar com a velha senhora: queria tanto uma bonequinha de milho para os cabelos pentear! A senhora, sem nada dizer, some no escuro por trás da janela.
João ainda parado cismava, mal ouviu a conversa da prima com a velha, e assim ficaram os dois parados, uma esperançosa, outro distante... até que a velha abriu a porta da casinha tão asseada, florida, como que vestida para uma festa; não os convidou a entrar poderiam muito sujar; mas... aproximando-se de Ana abriu a mão e mostrou uma bonequinha de palha que ela mesma fizera quando colhera o milho no meio do ano. Rude, nada dengosa com todo carinho retido no coração entregou-a à menina. Esta tão encantada com tamanho mimo, agradeceu timidamente. De dentro da casa vinha um cheiro doce, de rosca..., de broa... e na vizinha via-se fumaça saindo da chaminé! E quando a mãezinha que ali vivia ouviu o movimento protegeu o filho dormindo em seu colo para que continuasse seu sono embalado por sua terna voz! De mais distante vinha cheiro de assado! Numa varandinha cestas empilhadas formavam uma torre orgulho do balaieiro, artista da trança naquele terreiro. Ainda sem poder compreender onde é que estavam, o que aquela gente aguardava puderam num murinho sentar-se e ouvir um avô sua história terminar: “no sorriso de Maria e no gesto de José a certeza de que aquele lar vive em todo lugar onde um coração percebe a força da terra e acolhe o brilho do Céu!”
É Natal! Exclamaram os dois juntos... e confiantes tiveram a certeza de que estas dádivas já viviam qual sementes enraizadas em seus cálidos corações.
(texto extraído da Revista Nós, Época de Natal 2009, da Escola Waldorf Rudolf Steiner, São Paulo)