Histórias
Booz, O Pastor
Em Belém, quando os pastores estavam lá no campo guardando o rebanho, desceu sobre a terra uma paz maravilhosa. Nenhum cão latia, nenhuma ovelha balia, nenhuma ave noturna voava. É que estava chegando a hora do nascimento de Jesus e, no mesmo instante, uma multidão de seres celestiais surgiu junto dos pastores e o anjo do Senhor anunciou-lhes o nascimento da Criança divina em Belém. Num estábulo, encontraram Maria e José, e deitada na manjedoura estava a Criança. Quando se ajoelharam e a adoraram com profundo amor, encheu-se de luz o coração do pastor mais jovem. Uma voz o chamou, dizendo: “Levante-se, Booz, e corra à cidade de Belém; conte a todo mundo o que aconteceu hoje, para que muitos recebam e compreendam a boa nova e nunca mais se esqueça dela!”. Booz sentiu, então, descerem sobre ele uma alegria celestial e uma grande força e, apesar da escuridão da noite, pôs-se a caminho.
Nas portas da cidadezinha, estavam de guarda dois soldados romanos. Para eles o tempo custava a passar naquela noite gelada, e batiam com as botas no chão duro para aquecer os pés. Booz nem reparou em seus elmos ou em suas espadas. Na mesma hora, dirigiu-se a eles, exclamando: “Vocês também viram a grande claridade que se espalhou pelos campos? Ouvira os anjos cantando? Estão vendo, lá longe, aquele estábulo na colina? Pois é lá que está a Criança divina que veio ao mundo esta noite!” Os dois soldados olharam um para o outro e deram um risinho de zombaria. Um deles tocou com o dedo a própria testa, para mostrar que o garoto devia estar maluco. O outro bateu com a espada no escudo e exclamou: ”Volte para casa, rapaz. É proibido aos loucos vagarem de noite como cães vadios!” E bateu de novo com a espada no escudo. Por um momento, o jovem pastor Booz ficou ali como que petrificado. “Será possível que haja alguém que não queira ouvir a notícia de que no campo os seus se abriram para nós?” Uma pancada mais forte vibrada de chapa com a espada em seu ombro, fez com que ele voltasse a si. A dor o despertou e, curvado para frente, cruzou a porta com passo incerto e entrou na cidadezinha de Belém. Nas suas costas, ficaram soando as risadas zombadoras dos servos romanos.
Nos degraus de pedra de uma casa mais alta, ele se deixou cair como que atordoado. Chorava sem saber por que e murmurou baixinho: “Oh, Criança divina, será que você também vai-se curvar diante do mundo, sob o peso da dor?” O pastor ergueu os olhos para o céu. As estrelas já perdiam o brilho. O dia amanhecia. Nisto, saiu pela porta da hospedaria um aguadeiro com dois cântaros e se pôs a descer os degraus. Booz ergueu-se em pouco e disse: “Aguadeiro, essa noite o anjo do Senhor apareceu no meio do rebanho e nos revelou o nascimento de uma Criança divina. Ela está lá fora, no campo, no estábulo de Eli. Vá lá e leve para a pobre mãe um pouco d’água!”. “O que aconteceu com você, Booz?” – Perguntou o aguadeiro – “Porque você está sentado nesses degraus longe de suas ovelhas? Hoje não tenho tempo para brincadeiras; a casa está cheia de hóspedes que chegaram de viagem. Não podemos nos divertir juntos agora.” E foi embora antes que o pastor pudesse contar mais alguma coisa. Booz passou a mão na testa: “Será que estou sonhando? Será que esta noite não aconteceu nada fora do comum? As pessoas correm para o trabalho, como se hoje fosse um dia como outro qualquer. Será que devo sair gritando pelas ruas para que me dêem ouvido?” Mais que depressa, ele se ergueu dos degraus e se dirigiu para a rua, que começava a criar vida. Nisto, viu sair de sua oficina o ferreiro, que já havia afiado muitas vezes sua faca de pastor. Levava debaixo do braço um saco de couro, como se estivesse saindo de viagem, e parou debaixo do telheiro. Booz correu até ele e disse: “Mestre ferreiro, deixe hoje seu trabalho. Uma noite santa está chegado ao dim. Os anjos apareceram para nós no campo. Lá no estábulo de Eli veio ao mundo uma Criança divina.” O ferreiro, que em geral gostava de conversar com o pastor, respondeu de má vontade: “Hoje não tenho tempo para ficar ouvindo o que você sonhou durante a noite. Olhe só estes pregos grandes. Preciso carregá-los até Jerusalém e entregá-los aos servos romanos. Tenho de tocar depressa meu burrinho.” E com grandes passadas saiu dali, deixando para trás o pastor. Booz reparou então que sua mensage era tão grandiosa que ninguém conseguia entende-la direito e nem acreditar nela.
A mulher do ferreiro saiu da casa para se despedir do marido. Um pouco hesitante Booz se dirigiu a ela, dizendo: ”Bom dia, senhora ferreira!” “Bom dia, Booz. Já tão cedo na cidade?” “É que eu queria lhe contar que esta noite, lá no campo, no estábulo de Eli, uma pobre mãe teve um filhinho e o deitou na manjedoura. O marido está junto, mas estão muito necessitados.” A mulher do ferreiro disse: ”Meu bondoso Booz, vou até lá levar alguma coisa. Meu marido saiu de viagem, por isso tenho bastante tempo.” Booz, de tanta alegria deu-lhe um forte aperto de mão e exclamou: “É uma Criança divina! Os anjos vieram esta noite nos dar a noticia e mostraram a nós, os pastores, o caminha para o estábulo.” A mulher do ferreiro se espantou. Ela nunca vira Booz assim, quase fora do juízo. Vendo, porém, o brilho de seus olhos, também sentiu uma estranha alegria. Podia brilhar assim os olhos dos pastores? Ela não sabia o que dizer; mas percebeu que havia algo de muito especial no estábulo de Elie que ela devia ir logo até lá. Pouco tempo depois, já estava a caminho com um cântaro e uma cesta.
Enquanto isso, Booz chegou ao poço e encontrou lá o velho mendigo Levi. Ele já estava quase cego há anos e toda a manhã, dia após dia, sentava-se ali ao lado do poço, pedindo esmola. Perto dele, no chão, havia um odre de água. Ninguém lhe dirigia a palavra e ninguém prestava atenção ao que ele dizia. Booz se dirigiu a ele e disse: “Levi, meu velho, você não precisa mais pedir esmola. O reino dos céus está próximo. Esta noite os anjos nos anunciaram que o Filho de Deus havia nascido, e ele está no estábulo de Eli, nos campos que ficam defronte da cidade. E eu o vi em pessoa!” O velho respondeu: “É você, Booz? Sente-se aqui ao meu lado e me conte tudo!” O pastor sentou-se ao lado de Levi e pensou: “Até que enfim alguém quer saber de tudo”. E passou a contar, com palavras cheias de entusiasmos, o que lhe acontecera naquela noite santa. O mendigo escutou com a maior atenção, e em sua alma floresceram as palavras do pastor como rosas numa roseira. Quando Booz terminou sua narrativa, o velho exclamou: “Oh, milagre dos milagres! Oh, a grande profecia! Continue. Booz, conte mais, quero ouvir! Ah, se eu pudesse levar meu odre de água ao estábulo de Eli e saudar a Criança e os pais!” “Levi” – Disse Booz – “Eu guio você até lá! As pessoas, com suas ocupações, não têm tempo para entender esse milagre e ir até o presépio!” “Booz, você não se envergonha de andar na companhia de um mendigo?” “Venha, Levi, em seu cântico os anjos disseram que, para aquela Criança, todos os homens são irmãos.”
Levi, o mendigo, pôs o braço no ombro do pastor. Juntos, atravessaram a praça do mercado, e Booz disse: “São poucos os mescadores; está muito frio para que eles fiquem aqui metade do dia se enregelando.” De repente, Levi parou. Com dedos ágeis, apalpou sua pele de cabra, já puída, como se procurasse alguma coisa. Por fim, agarrou numa ponta e pediu: “Booz, passe me uma faca.” Espantado, Booz estendeu-lhe sua faca de pastor. Com ela, Levi fez um corte no couro e tirou de lá uma moeda romana. “Veja” – ele disse – “Esta moeda foi um soldado romano que jogou a meus pés há muito tempo. Fiquei contente de ver que, entre tantos soldados romanos, existe um em cujo peito bate um coração compadecido. Por isso, guardei a moeda. Nela está gravada a cabeça do imperador Augusto. Tome, Booz, vá ao mercador e compre figos e tâmaras para a família que esta no estábulo.” Assim foi feito. Quando os dois chegaram às portas da cidade, os guardas não eram os mesmos que estavam lá de manhã cedo. Eles jogavam dados em cima de uma pedra e de vez enquando, lançavam olhares distraídos para as portas. Levi e Booz passaram por ali despercebidos. Logo deixaram para trás as estradas e caminharam pelo campo. Levi apoiou o braço no ombro do pastor com mais força, pois o chão ali estava cheio de buracos. Quando se sentaram numa pedra para um ligeiro descanso, Levi contou: “Há tempos atrás, quando eu era jovem, tornei-me um rapaz atrevido e irrequieto. Viajei por muitas terras como guia de camelos, fui até a longínqua Índia. Depois que minha vista enfraqueceu e fiquei cego, passei a morar em Belém, minha cidade natal, e aprendi a viver humildemente da piedade dos homens. Tive muito tempo para refletir sobre o mundo e a humanidade e sobre os livros sagrados. Quando você me falou da Criança divina, meu coração se encheu de júbilo e, na mesma hora, fiquei sabendo que essa Criança era o Messias, que veio ao mundo para nosso consolo.” Enquanto Levi assim falava. Booz avistou uma mulher que vinha vindo dos lados do estábulo de Eli. Andava devagar, pensativa e de cabeça baixa, carregando uma cesta vazia. O pastor reconheceu a mulher do ferreiro. Tão estranha era sua aparência, que ele não se atreveu a falar com ela ou perturbar seus pensamentos. Ela ia chegando cada vez mais perto quando, de repente, viu Booz ao lado da pedra. Foi em sua direção, apertou-lhe a mãe em silêncio e manteve a cabeça baixa. Só então é que o pastor reparou que ela estava chorando. Delicadamente, perguntou: “Senhora ferreira, porque esta chorando?” “Oh Booz, eu sou uma pessoa ruim. E como vai mal o mundo, para que o Messias tenha de nascer pobre e solitário dentro de um estábulo!...” Booz respondeu: “A luz que ele tem é mais sagrada que o templo de Jerusalém; a terra toda é seu templo. E, por esta ele deitado numa manjedoura, até um pastor e um mendigo podem visitá-lo. Console-se, senhora ferreira” Todos nós somos pecadores!”
Eles então se separam: A mulher voltou para Belém, e o pastor e o mendigo foram para a gruta, diante da qual ficava o estábulo. Perto da entrada, Levi se ajoelhou e disse baixinho: “Oh, Booz, que luz clara e santa brilha aqui. Deixe-me fazer uma oração antes de entrar!” Ele beijou a terra onda estava ajoelhado. Enquanto isso, Booz fez um sinal, e então um homem saiu pela porta. Na mesma hora, o pastor e José se reconheceram. Ambos conversaram baixinho, e José avisou que Maria e a Criança estavam dormindo. Os dois visitantes aproximaram-se então da manjedoura. Levi, tateando, encontrou a beiras da manjedoura e se curvou sobre ela em silencio. Uma alegria imensa o inundou. Diante de seus olhos embaçados, ondeava como que uma névoa, brilhou afaze de uma Criança adormecida; a névoa ia-se dissipando cada vez mais. Uma pequena mãozinha se ergueu da palha. Levi tocou-a com os lábios. Quando ergueu a cabeça, segurando ainda na beirada da manjedoura, um tremor passou pelo seu corpo. Que seria aquilo? Na penumbra do lugar, ele viu, um pouco mais atrás, uma delicada mulher adormecia. Será que ele estava realmente conseguindo ver, ou seria tudo um sonho? Ele se virou e ficou ofuscado pela luz a que passava pelas frestas da porta. Estavam ali de pé dois homens: Um jovem e o outro mais velho. Levi levantou-se, dirigiu-se ao jovem e o abraçou, sussurrando: “Booz, eu estou enxergando! O anjo da Criança me devolveu a visão! Booz, meu irmão! Depois de tantos anos de escuridão, em primeiro lugar foi dado ver o messias e seus pais. Oh, benção das bênçãos!” Levi puxou Booz até a manjedoura, e lá, de mãos dadas, eles deram graças em silenciosa devoção.
Enquanto isso, José pôs sobre a tábua as tâmaras e os figos, que havia recebido de presente, e os serviu juntamente com a água do odre de Levi, que ele pôs numas taças. Assim, os três homens se uniram numa refeição silenciosa, pois não lhes seria possível descrever com palavras a santidade do momento. Como Booz precisasse seguir seu caminho, perguntou a Levi, diante da porta do estábulo: “Você quer vir comigo e ser também pastor nos campos de Belém? De um ano para o outro, os rebanhos crescem. Bem que poderíamos aproveitar sua ajuda.” Levi respondeu cheio de alegria: “Eu gostaria muito! Só tenho um pedido, Booz: Ajude-me, junto a seus irmãos, para que me deixem apascentar o rebanho de Eli. É para que eu possa voltar sempre aqui, a este estábulo, e me lembrar daquele que me fez de novo. E que nunca, neste lugar, saia uma só palavra de meus lábios, seja para homens, seja para animais, que não venha do amor do meu coração.”
Um velho Levi tornou-se um bom pastor em Belém e, constantemente, guiava seu rebanho, no frio e na chuva, para o estábulo de Eli. E ele amava suas ovelhas e muitas vezes conversava com elas como se elas com elas fossem gente: falava de sua vida de mendigo, de sua cegueira, de sua ida ao presépio e da santidade do estábulo na terra abençoada.