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Histórias

O Primeiro Milagre (Walter Schmidkunz)

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Walter Schmidkunz

 

A mãe de Deus peregrinava pelo campo, peregrinava ao encontro do lugar e da hora em que deveria levar aos homens o Filho de Deus. Ela havia atravessado montanhas, descido desfiladeiras passado por florestas e pela charneca. Agora o caminho estava Indo em direção ao sol poente que orlava de um brilho purpúreo pedras e árvores, boiava cintilante sobre as águas, e cercava de ouro as montanhas. Seus raios rodeavam o cabelo claro de Maria, fazendo parecer a sua cabeça envolvida por uma auréola. O céu era um luzir vermelho-áureo.
O dia estava a findar e a noite a cair. No Horizonte, realçavam-se à distância os contornos de torres e ameias e as cúpulas redondas de uma cidade. Antes das sombras terem engolido os objetos vizinhos e longínquos, Maria atravessou o portal da cidade. Sozinha e desamparada, ela passou pelas vielas escuras, sem saber onde encontrar uma hospedagem. Errava pelas ruas desertas, passa por largas praças, e perdia-se em estreitos recantos. Todavia, em parte alguma abria-se uma porta misericordiosa, e ninguém chamava a mãe aflita.
Assim ela chegou a porta de uma estalagem,  a qual retumbava noite adentro de folia e barulho. Maria entrou na porta aberta, e pediu humildemente ao estalajadeiro por uma cama.
Este sacudiu a cabeça e disse:
-O quê está pensando, mulher, a vós não posso hospedar. A minha taberna está cheia de camponeses e comerciantes, que bebem, fazem barulho e jogam toda a noite, e pagam bem. Nesta casa não há lugar para vós! Vede aonde vos recebem!
A mulher cansada teve de voltar para a noite escura. Continuou titubeando, passando por casas trancadas, ruas para baixo e para Cima. Finalmente, Maria chegou a uma chopana pobre, ao lado da qual ardia um fogo vermelho. Sob a alpendre negra de fuligem, cujo teto avançava para a rua, estava o ferreiro diante de sua forja, puxando a fole a fazer saltar as faíscas e abrasar e ferreiro, ora vermelho-fogoso, ora branco-brilhante. A ele a viandante dirigiu a palavra:
-Ai, caro ferreiro, não tendes vós uma cama para uma mulher cansada, um lugarzinho onde poderia aguardar a minha criança?
Os membros negam-se o serviço, e em parte alguma desta cidade encontrei uma casa acolhedora. Estarei contente com o mínimo que me possais oferecer!
Mas o ferreiro mal virou a cabeça e a despachou com duras palavras:
-Não tenho nem cama nem tempo para me preocupar convosco. Não me importa onde encontrais alojamento; não me perturbai no meu trabalho:
Ouvindo isso, molharam-se os olhos da boa mulher, e no vermelho clarão de fogo da forja rolavam como que lágrimas de sangue pelo seu semblante. Ela cobrou ânimo e perguntou ao homem:
-Maestro, dizei-me por que estais forjando e martelando aí tão tarde, e fiquais acordado em vez de dormir?
O ferreiro deteve-se por um momento no seu trabalho, pegou com os tanazes o prego grande, cumprido e pesado que tinha na forja, e o mostrou a Maria:
-Forjo pregos de ferro, com os quais crucificarão o messias que está por nascer logo. São estes que forjo!
Com isso jorrou uma grande dor do coração atormentado da mãe de solidão noite.
Cheia de dor e pena, prosseguiu no seu caminho noturno, e alcançou novamente os muros da cidade, sem ter encontrado um abrigo. Não sabia aonde ir com sua mágoa e seu corpo aflito. Sentia como se tivesse de se partir e definhar. Nisso ela ouviu a voz de um boi que berrava. Cansada para morrer ela titubeou ao encontro do som que saia de uma chopana pobre, refugiu-se ai na sua aflição e solidão, e escondeu-se num canto escuro. O estábulo pobre que a acolhera não tinha paredes inteiras, nem um telhado e o vento noturno vinha e saia assobiando e gélido. Diante de uma manjedoura estavam o boi e o burrinho. As vigas toscas chegavam bem baixo, e no chão de pedra dura a palha mal chegava a um palmo. E não obstante esse canto perdido não demorou em encerrar em si o céu e o mundo.
Pois, por volta da meia-noite, Maria deu à luz o filho de Deus. Deitou a criança na manjedoura de madeira, da qual comiam os animais do estábulo: com suas cuidadosas mãos maternas espalhou um pouco de palha debaixo dela e a envolveu na sua manta. Estava deitada no mais terno amor e coberta pelos mais doces pensamentos.
Quando chegou a manhã e os primeiros raios do sol entravam na pobre chopana, chegou com eles uma jovem ao estábulo. Era a filha do ferreiro que não havia recebido a mãe de Deus, porque tinha de forjar os pregos da cruz. O coração da feliz mãe abriu-se de alegria ao ver o primeiro ser humano depois de tantas horas de pena; com alegre amor ela chamou consigo a criança:
- Vem, filha,  toca o pano que envolve a criancinha, e tuas mãos e teus braços voltarão a viver!
- Ai, exclamou a filha do ferreiro ainda mais triste; é que não posso enxergar a criança e o pano; sou uma pobre cachopa cega!
-Então agarra a manjedoura ai diante de ti, e raganharás a vista!
Timidamente a menina tateou em sua volta, aproximou-se, tocou a manjedoura e a criança e, repentinamente, a noite caiu dos seus olhos, e de um rosto brilhante ela olhou como que assustada para o novo mundo desconhecido, e tinha novamente suas mãos sensíveis e seus braços a apanhar.
A grande felicidade quase perturbou os seus sentidos, aponto dela esquecer sua mãe e a criança e correr ter o pai, rindo ao seu encontro de olhos alegres e abraçando-o de braços felizes. O martelo caiu da mão do homem, ele se esfregou os olhos e apalpou em sua felicidade indisível e sua filha, cariciou-lhe os braços e as mãos, que sempre haviam sido insensíveis e aleijados, e olhou-lhe fundo nos olhos que haviam perdido sua cegueira triste. Assediou-a de perguntas cerca do milagre que lhe acontecera. Quando a menina lhe havia contado, que a bela mulher que lhe solicitara uma pousada a noite anterior fosse a mãe do menino Jesus nascido naquela noite, o ferreiro deixou o martelo e a forja e correu, tal qual se encontrava e tão depressa podia, para o estábulo, prostou-se diante da mãe e do menino divino, rogando de mãos torcidas por misericórdia:
-Ai, tivesse eu sabido que vós sóis a mãe de Deus, ter-vos-ia preparado a cama mais preciosa, ter-vos-ia oferecido uma pousada de ouro e prata! Teria deitado a própria cabeça sobre pedras e os pés em espinhos agudos! Mas agora mereço a morte e eterna danação!
A mulher divina, entretanto, consolou o homem desanimado, sobre cujo rosto negro rolavam as lágrimas.
-Vá-te e acredita! Ao arrependido abre-se o céu!
O ferreiro ainda vivia por muitos anos como um homem piedoso e fiel, forjava ferraduras e fazia chaves, e deixou de martelar os três pregos de ferro para a cruz.