Histórias
Natal na Barca
Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: Um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me
para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
- Tão gelada-estranhei, enxugando a mão.
- Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Vi que suas roupas puídas tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
- De Manhã esse rio é quente- insistiu ela, me encarando.
- Quente?
- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa,
Pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
- Mas a senhora mora aqui por perto?
- Em Lucena. Já ‘tomei’ esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que
justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranqüilo.
- Seu filho?
- É, está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia consultar um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem,mas de repente piorou. Uma febre, só febre...- Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. – Só sei que Deus não vai me abandonar.
- É o caçula?
- É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro,estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Atirei o cigarro no direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou , rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfrega-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
- E esse? Que idade tem?
- Vai completar um ano.- E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:-
Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que saía nada, mas era muito engraçado...Só a última mágica que fez foi perfeita, vou voar!- disse abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços – os tais laços humanos-já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.
- Seu marido está à sua espera?
- Meu marido me abandonou.
Sentei-me novamente e tive vontade de rir, era incrível. Fora uma loucura fazer as
primeiras perguntas, mas agora não podia mais parar.
-Há muito tempo?
-Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem! Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Duca enfeou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito...E não falou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no meio...Mas, eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrivelmente. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, e ainda vai pairar numa sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos energéticas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.
-A senhora é conformada.
-Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
-Deus-repeti vagamente.
-A senhora não acredita em Deus?
-Acredito- murmurei. E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber porque, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
-Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que sai pela rua afora, enfiei um casaco e sai descalça e chorando feito louca, chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de só me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos me aparecer só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto...Era tal sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a nina-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
-Estamos chegando-anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, era terrível demais, não queria ver. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
-Chegamos! Ei! Chegamos!...
Aproximei-me, evitando encara-la.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se a fez um movimento como se fosse pegar a sacola. Ajudei –a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
-Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
-Acordou?
Ela teve um sorriso.
-Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos-aqueles que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
-Então, Bom Natal! – disse ela, enfiando a sacola no braço.
Encarei-a . Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa. E acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim reiniciando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes volte-me ainda par ver o rio. E pude imagina-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
(Lygia Fagundes Telles)