Textos de Rudolf Steiner

O MISTÉRIO DE MICAEL (apostila) - A aparente extinção do conhecimento espiritual na Época Moderna

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Quem quiser fazer uma avaliação correta da relação entre a Antroposofia e a evolução da alma da consciência, deve sempre de novo enfocar o estado de espírito da humanidade culta que começa com o desabrochar das ciências naturais e atinge seu auge no século XIX.

Dirijamos o olhar anímico para a característica dessa época e comparemo la com aquela de épocas anteriores. Em todos os tempos da evolução consciente da humanidade, considerava se como conhecimento aquilo que aproximava o homem do mundo espiritual. 0 conhecimento determinava a relação com o espírito e esse conhecimento vivia na arte e na religião.

Isso mudou com a aurora da época da alma da consciência. Aí o conhecimento deixou de interessar se por grande parte da vida anímica humana. Ele queria pesquisar a relação entre o homem e a existência quando esta dirige seus sentidos e sua inteligência crítica à "natureza"; não queria mais ocupar se com o que o homem desenvolve como relacionamento com o mundo espiritual, quando usa sua capacidade de percepção interior a exemplo de seus sentidos.

Resultou dai a necessidade de relacionar a vida espiritual dos homens não com a cognição do presente, mas com tradições e conhecimentos válidos no passado.

A vida anímica humana ficou cindida. De um lado, o homem tinha diante de si o conhecimento da natureza que ia evoluindo, desabrochando na atualidade viva. De outro, vivenciava uma relação com o mundo espiritual que resultava de conhecimentos acumulados no passado. Essa vivência ia perdendo toda noção de como o conhecimento se realizava no passado. Existia a tradição, mas faltava o caminho pelo qual as verdades acumuladas tinham sido conhecidas. Existia apenas a possibilidade de se acreditar na tradição.

Um indivíduo que refletisse, ao redor do meio do século XIX, serenamente sobre a situação espiritual da época, teria de reconhecer que a humanidade tinha chegado a ponto de apenas se considerar capaz de desenvolver um conhecimento totalmente desvinculado do espiritual. Uma humanidade anterior foi capaz de pesquisar tudo o que se pode saber a respeito do espírito; mas a alma humana perdeu a capacidade dessa pesquisa.

As pessoas não concebiam então todo o significado dessa situação. Limitavam se a constatar que a cognição simplesmente não podia alcançar o mundo espiritual; este só pode ser objeto da fé.

Para ter noções mais claras a respeito dessa situação, olhava se para as épocas em que a sabedoria grega teve de recuar diante da civilização romana impregnada pelo cristianismo. Depois de terem as últimas escolas de filosofia grega sido fechadas pelo imperador Justiniano, também os últimos conservadores da antiga sabedoria emigraram das regiões onde a nova mentalidade européia passou a se desenvolver. Esses sábios foram acolhidos na academia de Gondishapur, na Ásia, um dos lugares onde a tradição da antiga sabedoria ficou mantida no oriente, em conseqüência dos feitos de Alexandre Magno; ela continuava vivendo ali na forma que recebera de Aristóteles.

Mas essa sabedoria antiga foi assimilada pela corrente oriental que pode ser designada arabismo. Sob um certo aspecto, o arabismo constitui um desabrochar prematuro da alma da consciência. 0 arabismo fez com que a vida anímica, prematuramente permeada pela alma da consciência, pudesse inundar a África e a Europa meridional e ocidental através de uma onda espiritual que, partindo da Ásia, preenchia certos indivíduos na Europa com um intelectualismo que normalmente devia ter aparecido somente mais tarde; nos séculos VII e VIII a Europa meridional e ocidental recebeu impulsos espirituais que deveriam ter chegado apenas na época da alma da consciência.

Essa onda espiritual conseguiu despertar o intelectual no homem, mas não a vivência mais profunda que leva a alma a submergir no mundo espiritual.

Quando o homem nos séculos XV a XIX passou a usar sua capacidade cognitiva, ele só pôde chegar a uma profundeza anímica em que ainda não se defrontava com o mundo espiritual.

Ao penetrar na vida espiritual européia, o arabismo impediu as almas sedentas de conhecimento de penetrar no mundo do espírito. Ele fez funcionar   de maneira prematura   o intelecto que só é capaz de apreender a natureza exterior.

E esse arabismo revelou possuir um imenso poder. Os que foram tomados por ele, tiveram a alma dominada por um orgulho interior, em grande parte inconsciente. Sentiam o poder do intelectualismo, mas não a incapacidade do mero intelecto de penetrar na realidade. Entregaram se à realidade sensorial exterior, que se erguia naturalmente diante deles, mas não se interessavam em aproximar se da realidade espiritual.

Essa era a situação com a qual a vida espiritual da Idade Média se confrontava. Ela ainda possuía as imponentes tradições do mundo espiritual; mas a vida anímica estava a tal ponto impregnada intelectualmente pelo arabismo que atuava, poderíamos dizer, de uma forma oculta, que a busca cognitiva não conseguiu chegar às fontes onde o conteúdo dessas tradições tinha sua origem.

Desde os primórdios da Idade Média havia, então, uma luta entre as correlações espirituais que os homens ainda sentiam instintivamente e a forma assumida pelo pensar devido ao arabismo.

Os homens sentiam dentro deles o mundo das idéias, vivenciando as como algo real. Mas suas almas não tinham a força de vivenciar o espírito nas idéias. Nasceu assim o realismo que tinha a sensação da realidade nas idéias, mas não conseguia captar essa realidade. 0 realismo ouvia o verbo cósmico que falava no mundo das idéias, mas não era capaz de entender sua linguagem.

Ao realismo opunha se o nominalismo; como a linguagem não podia ser compreendida, sua própria existência foi contestada. Para o nominalismo, o mundo das idéias não passava de uma soma de fórmulas na alma humana, sem qualquer raiz que o unisse com uma realidade espiritual.

Os conteúdos dessas correntes continuaram atuando até o século XIX. 0 nominalismo veio a ser a maneira de pensar das ciências naturais que elaboraram um sistema grandioso de opiniões sobre o mundo sensorial, mas destruíram toda compreensão da essência do mundo das idéias. 0 realismo era algo morto. Ele sabia da realidade do mundo das idéias, mas era incapaz de chegar a ela por uma cognição viva.

Podemos chegar a ela, quando a Antroposofia encontrar o caminho que conduz das idéias à vivência espiritual nas idéias. Num realismo sadiamente desenvolvido, o nominalismo científico deve ser completado por um caminho cognitivo, o qual demonstra que o conhecimento do espiritual não se apagou na humanidade, mas pode voltar a fazer parte da evolução humana, quando novos mananciais anímicos permitirem uma nova ascensão.

Goetheanum, março de 1925.


 

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