Textos de Rudolf Steiner

O MISTÉRIO DE MICAEL (apostila) - Gnose e Antroposofia

Imprimir

Quando se consumou o Mistério do Gólgota, esse maior acontecimento na evolução da Terra, uma parte da humanidade pôde compreendê lo não apenas sentimentalmente, mas por meio da cognição; a maneira de pensar desses homens era a "gnose".

Para compreender o estado anímico no qual a gnose vivia nos homens, é preciso lembrar que a época dessa gnose era aquela do desabrochar da alma da razão ou do sentimento.

Nesse fato reside também a causa do desaparecimento quase que total da gnose, da história da humanidade. Enquanto não for compreendido, esse desaparecimento é um dos acontecimentos mais surpreendentes do desenvolvimento da humanidade.

0 desabrochar da alma da razão ou do sentimento foi precedido por aquele da alma da sensação, precedido por sua vez, pelo desenvolvimento do corpo da sensação. Quando os fatos do mundo são percebidos pelo corpo da sensação, toda a cognição do homem vive nos sentidos. 0 mundo é percebido como colorido, sonoro, etc. Mas os homens sabiam que um mundo de seres espirituais estava presente nas cores, nos sons, nos estados térmicos, etc. Não se falava numa "matéria" na qual se manifestam as cores, estados térmicos, etc., mas sim em seres espirituais que se manifestam através daquilo que era percebido pelos sentidos.

Ainda não existia naquele tempo, o desenvolvimento de uma "razão", ao lado da percepção sensorial. 0 homem abria se ao mundo exterior, e ai os deuses se lhe manifestavam pelos sentidos; ou, em sua vida anímica, retraia se, do mundo exterior, tendo então em seu interior uma vaga sensação da vida.

Uma reviravolta notável ocorreu com o surgir da alma da sensação. A revelação do divino pelos sentidos foi se apagando. Ela foi substituída pela percepção das impressões sensoriais das cores, estados de calor, etc., em que o divino não estava mais presente. No interior o divino manifestava se de forma espiritual em idéias pictóricas. 0 homem percebia então o mundo sob dois aspectos: de fora, pelas impressões dos sentidos, de dentro, pelas impressões do espírito, que se manifestavam como idéias.

0 homem deve chegar a perceber as impressões espirituais tão nítidas e definidamente como antes percebera as impressões sensoriais permeadas pelo divino. Ele o pode, enquanto dura a época da alma da sensação, pois as imagens ideais afloram do seu interior com uma forma bem definida. Preenche o, de dentro, um conteúdo espiritual que não possui caráter sensorial e constitui uma imagem do conteúdo do mundo. Os deuses que se lhe haviam revelado antes, numa roupagem sensorial, passam a manifestar-se numa roupagem espiritual.

É essa a época do surgimento e da existência da gnose. Reina um conhecimento maravilhoso e o homem participa dele desde que consiga abrir o cerne do seu ser num ambiente de pureza, a fim de que o conteúdo divino possa manifestar se através dele. Essa gnose reina do quarto até o primeiro milênio antes do Mistério do Gólgota, na parte da humanidade mais avançada, quanto à cognição.

Começa, em seguida, a época da alma da razão ou do sentimento. As imagens divinas do mundo deixam de aflorar espontaneamente do cerne do ser humano. Este tem de mobilizar uma energia interior para que o façam. 0 mundo exterior com suas impressões sensoriais vem a ser problemático. 0 homem recebe respostas usando a força interior para fazer surgir do seu interior as imagens divinas do mundo.

Mas essas imagens são agora pálidas em comparação com seu aspecto anterior. Essa disposição anímica da humanidade chegou a um desenvolvimento admirável na Grécia. 0 homem grego sentia se viver nesse mundo sensorial exterior e teve nela o poder mágico que estimulava a força interior a produzir as imagens do mundo. No campo da filosofia, essa disposição anímica desabrochou no platonismo.

Por trás de tudo isso, porém, atuava o mundo dos mistérios. Nele foram fielmente conservados os remanescentes da gnose, da era da alma da sensação. As almas eram treinadas para essa fiel conservação. A evolução geral levou à gênese da alma da razão ou do sentimento. A alma da sensação foi reavivada por um treino especial, resultando dai, na era da alma da razão ou do sentimento, uma diversidade de mistérios bem evoluídos, por trás da vida cultural comum.

As imagens cósmicas dos deuses também estavam presentes pelo fato de se tornarem objeto de um culto. As pessoas tinham uma visão íntima dos mistérios e vislumbravam o universo, projetado nas imagens das mais sublimes instituições cúlticas.

Os homens que tinham essa experiência eram os mesmos que compreenderam o significado cósmico mais profundo do Mistério do Gólgota. Mas esses mistérios se mantinham longe da agitação do mundo, a fim de desenvolver as imagens cósmicas em toda a sua pureza. E tornou se cada vez mais difícil para os homens, participar desse desenvolvimento.

Aí houve seres espirituais que desceram do cosmo espiritual aos santuários dos mistérios mais evoluídos para ajudar os homens em busca de conhecimento. Os impulsos da era da alma da sensação continuavam, pois, a desenvolver se, sob a influência dos próprios "deuses". Surgiu uma gnose dos mistérios da qual, pouquíssimas pessoas tinham a menor idéia. Ao lado dela desenvolvia se aquilo que os homens podiam assimilar com a alma racional: era a gnose exotérica da qual alguns fragmentos chegaram à posteridade.

Na gnose esotérica dos mistérios, os homens tornavam se, cada vez mais incapazes de se elevarem ao desenvolvimento da alma da sensação. Sua sabedoria esotérica passou a ser, sempre, mais um culto dedicado aos "deuses". E isto é um segredo do desenvolvimento histórico: que "mistérios divinos" atuaram desde os primeiros séculos cristãos até a Idade Média.

Nesses "mistérios divinos", algo que não podia mais ser guardado pelos homens, foi conservado pelos seres angélicos na existência terrena. Continuou reinando a gnose dos mistérios, enquanto havia esforços para extirpar a gnose exotérica.

0 conteúdo das imagens cósmicas, que na gnose dos mistérios era guardado, de modo espiritual, por seres espirituais enquanto devia atuar na evolução da humanidade, não pode ser conservado para a compreensão consciente da alma humana. Mas o conteúdo sentimental devia ser conservado. No momento cósmico certo, esse conteúdo devia ser transmitido a uma humanidade devidamente preparada, para que a alma da consciência pudesse penetrar, mais tarde, de uma nova maneira, no reino do espírito, graças ao calor anímico do conteúdo da gnose. Foram, pois, seres espirituais que lançaram uma ponte entre o antigo conteúdo do universo, e o novo.

Existem alusões a esse mistério da evolução da humanidade. 0 sagrado cálice de jaspe do Graal, do qual o Cristo se serviu quando partiu o pão, no qual José de Arimatéia recolheu o sangue que escorria da ferida de Jesus, cálice este que, portanto, continha o Mistério do Gólgota, e que de acordo com a lenda, foi guardado pelos anjos até poder ser entregue aos homens devidamente preparados, depois de Titurel ter construído o castelo do Graal.

Foram seres espirituais que guardaram as imagens cósmicas em que viviam os segredos do Gólgota. Quando os tempos haviam chegado, esses seres implantaram nas almas humanas o conteúdo sentimental, já que não era possível implantar o conteúdo das imagens.

Essa implantação do conteúdo sentimental do antigo conhecimento pode constituir apenas um estímulo; mas é um estímulo extremamente forte para que se desenvolva em nossa era da alma da consciência uma nova e total compreensão do Mistério do Gólgota, à luz da atuação de Micael.

A Antroposofia almeja essa nova compreensão. A descrição dada deixa claro que ela não pode constituir uma renovação da gnose, cujo conteúdo se baseava no tipo de cognição próprio da alma da sensação; mas ela pretende haurir da alma da consciência um conteúdo não menos rico, por um caminho totalmente novo.

Goetheanum, janeiro de 1925