Textos de Rudolf Steiner
O MISTÉRIO DE MICAEL (apostila) - O Sono e o estado de Vigília à luz das considerações anteriores
O sono e o estado de vigília já têm sido objeto de considerações antroposóficas sob vários pontos de vista. Mas a compreensão de tais fatos deve ser novamente aprofundada quando novas áreas tiverem sido observadas. As explicações sobre o fato de ser a Terra um gérmen para o macrocosmo em vias de formação resultam na possibilidade de uma compreensão mais profunda das concepções sobre sono e vigília.
No estado de vigília, o homem vive nas sombras dos pensamentos, projetadas por um mundo morto e nos impulsos da vontade, cuja essência íntima está tão oculta à sua consciência normal como o são os acontecimentos do sono profundo, sem sonhos.
Quando esse impulso volitivo subconsciente flui às sombras dos pensamentos, nasce a auto-consciência livre. Nessa auto-consciência vive o Eu.
Enquanto o homem vivência, nesse estado, o seu mundo ambiente, sua vivência interior está sendo permeada por impulsos cósmicos extraterrestres que se estendem de um passado cósmico longínquo até o presente. Ele não tem consciência desse fato. Um ser qualquer só pode se tornar consciente de algo do qual participa com suas próprias forças que se acham num processo de desagregação, mas não com forças que vivem crescendo e animam o próprio ser. 0 homem vivência, pois, a si mesmo enquanto perde de sua visão espiritual aquilo que fundamenta seu próprio ser interior. Mas é justamente por isso que está em condições de, durante o estado de vigília, se sentir inteiramente nas sombras dos pensamentos. Nenhum impulso de vitalidade impede a vida interior de participar naquilo que está morto. Mas a essência do terreno, gérmen de um novo universo, não se abre àquela "vida no que está morto". No estado de vigília, o homem não percebe como a Terra realmente é; escapa lhe sua vida cósmica principiante.
Vive o homem, naquilo que a Terra lhe dá como fundamento de sua auto-consciência. Na época do desabrochar do eu auto consciente, ele perde a visão espiritual da verdadeira natureza de seus impulsos interiores e de seu mundo ambiente. Pairando dessa maneira acima do ser do mundo, ele vivência o ser do Eu, sentindo se como ente dotado de auto-consciência. Acima dele o cosmo extra terrestre; abaixo dele, no âmbito terreno, um mundo cuja essencialidade lhe fica escondida; entre ambos, a revelação do Eu livre cuja essencialidade brilha no fulgor do conhecimento e do livre querer.
E diferente no estado de sono. Aí, o homem vive, por meio de seu corpo astral e de seu Eu, na vida germinativa da Terra. Quando dorme sem sonhar, seu mundo ambiente é animado de um impulso muito intensivo de "querer chegar à vida". Os sonhos são imbuídos dessa vida, mas não tão intensamente que o homem não os pudesse vivenciar numa espécie de semiconsciência. Nessa visão semiconsciente dos sonhos, percebemos as forças pelas quais a essência humana está sendo tecida a partir do cosmo. No refulgir do sonho, se torna visível, como o astral flui ao corpo etérico, vitalizando o indivíduo. Nesse refulgir, o pensamento ainda está vivo. Só depois do despertar, ele fica envolto pelas forças que o fazem morrer, transformando o em mera sombra.
Essa relação entre a representação onírica e o pensamento do estado de vigília é algo significativo. 0 homem pensa com as mesmas forças que o fazem viver e crescer; só que elas devem morrer para que ele se transforme em ser pensante.
É nessa altura que pode surgir a correta compreensão de porque o homem pode captar a realidade por meio do pensar. Ele tem em seus pensamentos, a imagem morta daquilo que plasma a ele mesmo a partir de uma realidade cheia de vida.
Essa imagem morta é o produto da atividade do maior pintor que é o próprio cosmo. É verdade que a vida está ausente dessa imagem. Se não estivesse, o eu não poderia se desenvolver. Mas todo o conteúdo do universo, em sua glória, está presente nela.
Na medida em que me era possível expor isso, eu já apontei em minha "Filosofia da Liberdade" para esse relacionamento interior entre o pensar e a realidade do mundo; foi naquele trecho onde digo que uma ponte conduz das profundidades do Eu pensante às profundidades da realidade da natureza.
Para a consciência comum, o sono tem um efeito apagador pois conduz à vida germinativa da Terra, que se transmite ao macrocosmo em formação. Se essa ação apagadora for inibida pela consciência imaginativa, a alma não se defronta com uma Terra dividida por contornos nítidos em reino mineral, vegetal e animal. Existe, antes, um processo vivo que se acende na Terra e se projeta em flamas ao macrocosmo.
É uma necessidade o homem destacar se, no estado de vigília, com seu Eu, do ser do mundo; só assim atingirá a auto-consciência livre. No estado de sono, ele volta a unir se com o ser do mundo.
É esse o ritmo que reina, no momento cósmico atual, entre a vida humana na Terra, fora do "âmago" do mundo, acompanhada pela vivência da existência própria da vida no "âmago" do universo, estando apagada a consciência da existência própria.
No estado entre a morte e um novo nascimento, o Eu humano vive dentro dos seres do mundo espiritual. Aí penetra na consciência tudo que dela se subtrai durante a vida de vigília na Terra. Surgem as forças macrocósmicas, desde sua vida plena num passado remoto, até seu estado de morte no presente. Surgem também as forças terrestres, gérmen do macrocosmo em formação. E assim, o homem tem a visão dos seus estados de sono, como enxerga, durante sua vida terrestre, a Terra banhada pelos raios do Sol.
E só graças ao fato do macrocosmo, tal como é atualmente, ter se tornado algo morto, que o ser humano pode atravessar, entre a morte e o novo nascimento, uma forma de vida que significa, quando comparado com a vida de vigília na Terra, um despertar superior. Um despertar que capacita o homem para dominar totalmente aquelas forças que apenas refulgem fugazmente durante o sonho. Essas forças preenchem todo o cosmo, elas permeiam tudo. É delas que o homem tira os impulsos que lhe permitem plasmar, ao descer para a Terra, seu corpo, que é a maior obra de arte do macrocosmo.
Aquilo que se manifesta no sonho como algo crepuscular, abandonado pelo Sol, vive no mundo espiritual como algo banhado pelo Sol, na expectativa que os seres das hierarquias superiores ou o homem o chamem para lhe dar, por um ato criador, uma existência essencial.
Goetheanum, janeiro de 1925.