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Textos de Rudolf Steiner

A MISSÃO DE MICAEL (apostila) - Nona Conferência

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Rudolf Steiner  

Dornach, 12 de dezembro de 1919

 

Como a nossa partida foi adiada poderei falar aos senhores hoje, amanhã e depois de amanhã. Para mim é uma grande satisfação, pois alguns amigos chegaram da Inglaterra e também poderei dirigir algumas palavras a eles antes da partida.


Esses amigos devem ter visto que a construção do Goetheanum progrediu durante esses anos difíceis mas ainda não pôde ser terminada, e  também não podemos prever a data da conclusão. Mas o que já existe lhes mostrará os fundamentos espirituais sobre os quais esta construção foi erigida, e como ela está ligada ao movimento espiritual  representado aqui. É por isso que, tendo hoje, depois de muito tempo, a oportunidade de falar novamente aos amigos ingleses presentes em grande número, usarei o próprio edifício como ponto de partida das nossas reflexões. Nos próximos dois dias poderemos acrescentar alguns outros assuntos ao que pode ser dito sobre a obra, dos quais podemos dizer que talvez seja importante abordá-los justamente agora.
Quem observar a nossa obra, que hoje já revela algo de sua idéia, perceberá sua conexão especial com o nosso movimento espiritual. Talvez justamente a partir dessa representação do nosso movimento espiritual, ele poderá ter uma impressão de como esse movimento pretende ser. Imaginem o que aconteceria se algum movimento sectário, por mais conhecido que seja, tivesse a necessidade de construir uma casa assim para suas reuniões? Seria feita uma construção num estilo determinado, cujas dimensões correspondessem às necessidades dessa sociedade ou associação, e os senhores teriam talvez dentro dessa construção, por meio de um símbolo mais ou menos significativo, uma indicação do que deverá acontecer lá dentro. Talvez encontrassem aqui e ali uma imagem que indicasse o que de algum modo se pretende ensinar ou expor dentro dessa construção. Devem ter observado que tudo isso foi evitado na obra do Goetheanum. Esta construção não foi erguida de forma meramente exterior para ser usada pelo movimento antroposófico, ou pela Sociedade Antroposófica, mas a obra, com todos os seus detalhes, nasceu a partir do que o nosso movimento quer representar perante o mundo no que se refere ao aspecto espiritual, e outros. Este movimento não podia dar-se por satisfeito em erguer uma casa nesse ou naquele estilo, este movimento, no momento em que se falava da construção de uma casa própria, sentiu-se impelido a encontrar um estilo próprio a partir dos fundamentos da nossa Ciência Espiritual, um estilo em que, por meio de todos os detalhes, se expressasse a substância espiritual que flui através dele. Seria impensável mandar construir para o nosso movimento uma casa num estilo qualquer. De antemão dever-se-ia concluir quão grande é a distância entre o que se pretende com esse movimento, e qualquer movimento sectário ou de outra natureza, por mais conhecido que seja.  Era necessário que não construíssemos apenas uma casa, mas que encontrássemos um estilo que expressasse exatamente o que se diz por meio de cada palavra, cada frase da nossa Ciência Espiritual orientada pela Antroposofia.


Sim, estou convencido de que se nos aprofundarmos suficientemente no que se  possa, de verdade, sentir nas formas dessa obra - prestem atenção, eu disse: Possa ser percebido, e não: Possa ser inventado -, de que aquele que pode senti-lo poderá deduzir da sensação transmitida pelas formas da obra aquilo que, de outro modo, se diz pela palavra.


Isso não é uma coisa superficial, é algo intimamente ligado com a maneira como se pretende que seja esse movimento espiritual. Esse movimento espiritual quer ser algo diferente daqueles movimentos espirituais que surgiram, aos poucos, na humanidade, desde o começo do quinto período cultural pós-atlântico, digamos desde a metade do século XV. Essa convicção baseia-se no fato de que hoje é necessário introduzir na evolução da humanidade algo diferente do que foi introduzido nela a partir da metade do século XV. O que caracteriza tudo o que foi executado pela humanidade civilizada nos últimos três, quatro séculos, parece-me ser o seguinte: A vida prática exterior no âmbito mais amplo, que se mecanizou fortemente, forma hoje um reino para si. Forma um reino para si que, de certo modo, é usado como monopólio por aqueles que têm a convicção de serem pessoas práticas. Ao lado dessa vida prática exterior que se configurou em todas as áreas da  assim chamada vida prática, temos uma soma de convicções, cosmovisões e filosofias espirituais ou como queiram chamá-las que, no fundo, pouco a pouco, mas especialmente durante os últimos três, quatro séculos, perderam o senso prático; que, considerando os sentimentos e percepções que proporcionam ao ser humano, de certa maneira pairam acima da verdadeira vida prática. A diferença entre essas duas correntes é tão grande que podemos dizer que, na atualidade, começou o tempo em que essas duas correntes não se entendem mais de forma alguma ou, dito de forma melhor, um tempo em que as duas correntes não têm quaisquer pontos de contato que lhes permitam desenvolver uma ação recíproca. Hoje administramos as nossas fábricas, fazemos os trens andarem sobre trilhos, enviamos navios a vapor pelos mares, fazemos funcionar telégrafos e telefones, fazemos tudo isso deixando, de certo modo, a mecânica da vida transcorrer automaticamente, e permitimos que esta vida nos domine. E por outro lado pregamos, fazendo muitos sermões. Pregam-se as velhas confissões clericais nas igrejas, os políticos pregam nos parlamentos, os diversos anseios das diversas áreas falam das exigências do proletariado, das exigências das mulheres. Prega-se muito, e o conteúdo desses sermões vai bem ao encontro da consciência humana atual, é algo claramente almejado. Mas se perguntássemos onde está a ponte entre o que pregamos e o que a nossa vida exterior realiza na prática, não encontraríamos uma resposta realmente sincera e verdadeira baseada no movimento atual da nossa época.


Menciono o fenômeno seguinte somente porque esse fato torna-se mais compreensível através dele: Os senhores sabem que para a humanidade moderna, além de todas as possibilidades para pregar, existem ainda diversas formas de sociedades secretas. Tomemos dentre essas sociedades secretas as lojas maçônicas comuns, incluindo as que têm os graus mais profundos ou mais elevados, e encontraremos um simbolismo: O triângulo, o círculo, o esquadro e coisas semelhantes. Encontramos até uma expressão freqüentemente usada nesse contexto: “O mestre de obras de todos os mundos”.
O que é tudo isso? Voltando aos séculos IX, X e XI, e olhando para o mundo civilizado em que essas sociedades secretas, essas lojas maçônicas se espalharam como um grupo superior na civilização, descobriremos que todos os instrumentos que hoje são usados como símbolos nos altares das lojas maçônicas eram utilizados para a construção de casas e igrejas. Utilizavam esquadros, círculos, compassos, balanças de nível, fios de prumo, na vida prática. Nas lojas maçônicas proferem-se conferências e se dizem muitas coisas bonitas que têm relação com estas ferramentas que perderam totalmente a conexão com a vida prática, coisas muito bonitas deveras, mas totalmente alheias à vida prática exterior. Chegamos a idéias e configurações de pensamentos aos quais falta a força de intervir na vida. Aos poucos chegamos à situação em que os homens trabalham de segunda a sábado, e no domingo vão ouvir o sermão. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. E, muitas vezes, as ferramentas que antigamente estiveram intimamente ligadas com a vida prática exterior, são usadas nos sermões como símbolos do belo, do verdadeiro, até da virtude. Mas essas coisas são alheias à vida. Sim, chegamos ao ponto de acreditar que, quanto mais alheios os sermões forem à vida, tanto mais eles se elevam aos mundos espirituais. O mundo profano comum é algo inferior. Hoje olhamos para muitas das exigências que surgem do âmago da humanidade, mas essas exigências não são realmente compreendidas. Pois que relação há entre os sermões proferidos em recintos mais ou menos bonitos sobre aspectos sociais, sobre, digamos, como devemos amar a todos os homens sem distinção de raça, nação, e assim por diante, até de cor, e o que acontece exteriormente, o que incentivamos deixando que o banco pague nossa aposentadoria, conduzindo a vida prática exterior segundo princípios muito diferentes daqueles sobre os quais falamos em casa como sendo os princípios dos homens bons. Fundamos, por exemplo, sociedades teosóficas em que falamos a todos justamente sobre fraternidade, sem que essas palavras tenham a menor força  impulsionadora para dominar o que acontece por nosso intermédio quando vamos pagar a previdência social. Pois ao pagar a previdência social colocamos em movimento uma porção de coisas na esfera sócio-econômica. Nossa vida se divide entre essas duas correntes totalmente separadas.


E assim pode acontecer - não lhes dou um exemplo clássico, mas um exemplo da vida -  , aliás já aconteceu, de uma senhora me procurar e dizer: “Uma pessoa veio falar comigo e solicitou uma contribuição que, depois, será usada para prestar assistência à pessoas que tomam álcool. Sou teósofa e não posso fazer isso!”. Assim falou aquela senhora. Eu só pude responder-lhe: “Veja, a senhora vive de rendas, não é? Sabe quantas cervejarias são fundadas e mantidas com os seus bens?” Para aquilo que é importante não se trata de ficarmos, por um lado, pregando sermões para satisfazer voluptuosamente a nossa alma e, por outro lado, nos posicionarmos na vida do modo como o exige a rotina surgida durante os últimos três a quatro séculos. Poucas pessoas estão dispostas a aprofundar-se nesse problema fundamental da atualidade. De onde vem isso? Vem do dualismo que penetrou na vida - tornando-se mais poderoso nos últimos três a quatro séculos -, entre a vida externa e os nossos assim chamados anseios espirituais. A maioria das pessoas, quando fala do espírito, está falando de algo muito abstrato, alheio ao mundo, e não de algo que pode intervir na vida cotidiana.


A questão, o problema que isso indica deve ser abordado pela raiz. Se aqui, no morro do Goetheanum, tivéssemos agido segundo as tendências dos últimos três a quatro séculos, talvez tivéssemos nos dirigido a um arquiteto qualquer, a um arquiteto famoso, e teríamos construído um belo edifício que logicamente poderia ficar muito bonito a partir de algum estilo arquitetônico. Não poderíamos fazer assim, porque ao entrarmos nessa obra, estaríamos rodeados de coisas bonitas de um ou outro estilo, e dentro dela falaríamos sobre assuntos que combinariam com a construção, que seriam mais ou menos como todos os belos discursos proferidos hoje, e que em nada combinam com a prática de vida cultivada pelas pessoas. Não podia ser assim, porque não é esse o sentido da Ciência Espiritual que quer orientar-se pela Antroposofia. Sua intenção foi diferente desde o começo. Ela foi pensada de modo que não se erigisse a falsa contradição antiga entre espírito e matéria em que, depois, trata-se o espírito abstratamente, sem nenhuma possibilidade de mergulhar na essência e na atuação da matéria. Quando estamos autorizados a falar do espírito? Quando falamos verdadeiramente do espírito? Somente falamos verdadeiramente do espírito, quando vemos o espírito como o criador do que é material. O pior que se pode falar do espírito (mesmo que hoje muitas vezes seja vista como a maneira mais bela) é dizer que ele é uma utopia, falar dele como se o espírito não devesse sequer ser tocado pelo elemento material. Não, nós devemos falar do espírito referindo-nos ao espírito que tem a força de mergulhar diretamente na matéria. E ao falar da Ciência Espiritual, ela não deve ser pensada somente como algo que se eleva acima da natureza, mas que é, ao mesmo tempo, uma ciência natural inteiramente válida. Ao falar do espírito, devemos referir-nos ao espírito com o qual o homem pode ligar-se, de modo que esse espírito também possa ser entretecido na vida social por intermédio dele. Um espírito do qual só se fala nos salões, ao qual se quer agradar sendo bom e amando fraternalmente, um espírito que evita mergulhar na própria vida, esse espírito não é o verdadeiro espírito. Esse espírito é uma abstração humana, e a elevação a ele não é a elevação ao verdadeiro espírito, mas justamente o resultado último do materialismo.


Por isso tivemos que erguer uma construção que, em todos os seus detalhes, fosse idealizada a partir do que vive na Ciência Espiritual orientada pela Antroposofia. E relaciona-se com isso o fato de que nesses tempos difíceis surgiu uma abordagem da questão social a partir da Ciência Espiritual que não queria ater-se a utopias, mas fazer parte da vida desde o princípio de sua atuação, que pretendia ser justamente o contrário de qualquer espécie de sectarismo, que visava compreender o que existe nas grandes reivindicações do nosso tempo, e queria servir à essas reivindicações. Sim, muitas coisas nessa obra não deram certo. Mas hoje não se trata de que tudo dê certo logo de início, o importante é que fosse dado um início. Parece-me que, com essa construção, foi dado pelo menos esse início necessário. Quando esta obra estiver pronta, realizaremos o que nos cabe realizar não dentro de uma construção qualquer em que seríamos envolvidos por paredes estranhas mas, assim como a casca da noz combina com a noz, assim cada linha, cada forma e cor desta construção corresponderá ao que flui pelo nosso movimento espiritual.


Seria necessário que, no presente, pelo menos um certo número de pessoas compreendesse esse querer, porque tudo depende desse querer.
Preciso mencionar mais uma vez algumas características que surgiram durante os últimos três a quatro séculos da evolução da humanidade civilizada. Existem fenômenos na evolução dessa humanidade civilizada que expressam de modo bem característico as bases mais profundas daquilo que leva ao absurdo na vida atual do ser humano; pois ele  realmente leva ao absurdo. A verdade é que uma grande parte das almas humanas está realmente dormindo. Se estivermos em algum lugar onde ocorrem certos fatos que são verdadeiras contraimagens, reversos de toda a vida civilizada; se estivermos em algum lugar onde estas contra-imagens não se nos apresentam diretamente, mas acontecem em muitas regiões do mundo civilizado de hoje e são significativas e sintomáticas para o que deve alastrar-se cada vez mais, então podemos concluir: Sim, os seres humanos, com suas almas estão fora dos acontecimentos atuais mais importantes. As pessoas vivem o cotidiano, e não se dão conta do que realmente está acontecendo na atualidade enquanto não forem atingidas por esses acontecimentos diretamente. Mas, na verdade, os verdadeiros impulsos desses acontecimentos estão nas profundezas da vida anímica subconsciente, ou inconsciente, do ser humano.


Na base do dualismo que hoje descrevi existe outro: O dualismo que se expressa, por exemplo - creio estar mencionando um exemplo característico - , no “Paraíso Perdido”, de Milton. Mas é somente um sintoma exterior de algo que atravessa todo o pensar, sentir, e querer modernos. Na consciência humana mais recente temos o sentimento de uma oposição entre o céu e o inferno, chamado por outros de espírito e matéria. No fundo, são apenas pequenas diferenças de gradação entre o céu e o inferno do camponês que vive no campo, e entre o espírito e a matéria do filósofo moderno (que se diz esclarecido). Os verdadeiros impulsos que fundamentam os pensamentos são exatamente os mesmos. A diferença, na verdade, é a que existe entre Deus e o diabo, entre paraíso e inferno. É uma certeza para os homens: O paraíso é bom, e é terrível que os seres humanos tenham saído do paraíso;  o paraíso é algo perdido, precisa ser reencontrado, e o diabo é um inimigo terrível que se contrapõe a todos os poderes que relacionamos com o conceito de paraíso. Pessoas que não têm idéia alguma de como os contrastes anímicos regem até mesmo as ramificações mais exteriores de nossas diferenças e reivindicações sociais, não podem imaginar em que extensão existe este dualismo entre céu e inferno, ou entre o paraíso perdido e a Terra. Hoje precisamos dizer algo bastante paradoxal se quisermos dizer a verdade, pois quase não é possível dizer a verdade sobre certos assuntos sem que essa verdade pareça uma loucura aos nossos contemporâneos. Mas, assim como, no sentido do Apóstolo Paulo, a sabedoria dos homens pode ser uma tolice aos olhos de Deus, assim a sabedoria dos homens atuais, ou a sua loucura, também poderá parecer loucura na visão das pessoas do futuro. Os homens criaram, aos poucos, uma fantasia sobre essa diferença entre Terra e paraíso: Relacionam o paradisíaco com o que deveria ser almejado como o verdadeiramente divino-humano, e não sabem que o anseio por esse paraíso é tão grave para o ser humano quando simplesmente anseia por ele quanto seria o anseio pelo seu oposto. Pois se imaginarmos a estrutura do mundo tal como a que serve de fundamento à representação mental do “Paraíso Perdido“, de Milton, estaremos mudando o nome de um poder, prejudicial à humanidade quando desejado unilateralmente, considerado o poder divino, bom, e lhe contrapondo um poder que, na verdade, não é o seu oposto verdadeiro: A oposição do diabo, a oposição daquilo que, na natureza humana, depende da resistência ao bem.

O protesto contra essa idéia caberá à escultura a ser erguida a leste, no interior da construção: uma escultura de madeira de nove metros de altura, na qual, em lugar da oposição luciférica entre Deus e o diabo será colocado o que deverá ser, no futuro, a base da consciência da humanidade: a trindade composta pelo elemento luciférico, o elemento relativo ao Cristo, e o elemento arimânico.


A civilização moderna tem tão pouca consciência do mistério em que isso se fundamenta, que podemos dizer o seguinte: Por certas razões, sobre as quais talvez ainda falarei aqui, denominamos essa obra de “Goetheanum” por ter sido concebida a partir do modo pelo qual Goethe pensava sobre a arte e o conhecimento. Mas ao mesmo tempo devemos dizer que, quanto à oposição que Goethe estabeleceu no “Fausto” entre os poderes benignos e Mefistófeles, existe o mesmo engano cometido no “Paraíso Perdido”, de Milton: De um lado os poderes bons, do outro lado o poder maligno de Mefistófeles. Nesse Mefistófeles Goethe misturou confusamente os elementos luciférico, de um lado, e o arimânico, do outro lado, de modo que na figura de Mefistófeles descrita por Goethe existem, para a pessoa que compreende o assunto, duas individualidades espirituais misturadas de forma desorganizada. O ser humano precisa reconhecer que seu verdadeiro ser somente pode ser expresso pela imagem do equilíbrio. O ser humano é tentado, por um lado, a querer sobressair acima da cabeça, fugir para o fantástico, para a exaltação, sair para o falsamente místico. Isto é um poder. O outro é o que, de certo modo, puxa o ser humano para o material, o sóbrio, o seco, e assim por diante. Somente entendemos o ser humano se o compreendermos segundo sua essência, que almeja o equilíbrio entre o arimânico, num lado do travessão da balança e o luciférico, no outro lado.  


             O ser humano precisa buscar constantemente a posição de equilíbrio entre estas duas forças: A força que quer levá-lo a sair de si mesmo, e a que quer puxá-lo para baixo de si mesmo. Mas a civilização espiritual moderna confundiu o caráter fantástico, exaltado, do elemento luciférico com o divino. Assim, o que se descreve como paraíso, na verdade é a descrição do luciférico, e faz-se essa terrível confusão entre o luciférico e o divino porque não se sabe que o importante é manter a posição de equilíbrio entre os dois poderes que puxam o ser humano, para um lado, ou para o outro.
Em primeiro lugar, este fato teve que ser descoberto. Se o ser humano deve aspirar ao que denominamos crístico, conceito sob o qual, hoje em dia, entendem-se as coisas mais estranhas, então é necessário que fique claro que isso só pode ser uma aspiração pelo equilíbrio entre o luciférico e o arimânico. Especialmente os últimos três a quatro séculos apagaram tanto o verdadeiro conhecimento do ser humano, que pouco se sabe a respeito do equilíbrio, a tal ponto que o elemento luciférico foi rebatizado de divino no “Paraíso Perdido”, tornando o arimânico uma oposição que não é mais Árimã, mas que veio a ser modificado para o diabo moderno, ou a matéria moderna, ou algo parecido. Esse dualismo que, na verdade, é um dualismo entre Lúcifer e Árimã, se intromete na consciência da humanidade moderna como a oposição  entre Deus e o diabo. E o “Paraíso Perdido” teria que ser interpretado como a descrição do reino luciférico perdido, só que lhe deram outro nome.


É com muita energia que temos de chamar a atenção para o espírito da civilização mais moderna, porque é necessário que a humanidade compreenda como chegou a esta descida íngreme - é uma necessidade histórica, mas as necessidades também existem para que as compreendamos - e como somente poderá voltar a subir depois de uma dieta   radical. Hoje freqüentemente entendemos sob descrição do mundo espiritual uma descrição do que é supra-sensorial, mas não de algo que viva aqui na nossa Terra. Recorremos a uma cosmovisão para fugir do que nos rodeia aqui na Terra. Não sabemos que, fugindo para um reino espiritual abstrato, não encontraremos o verdadeiro espírito, mas a região luciférica. E muitas coisas que hoje se denominam misticismo ou Teosofia, são a procura pela região luciférica. Pois o mero saber sobre o espírito não pode ser o fundamento para o anseio espiritual atual dos seres humanos, visto que é próprio dessa procura pelo espiritual reconhecer a ligação entre os mundos espirituais e o mundo em que nascemos para viver entre o nascimento e a morte.


Essa pergunta deveria tocar-nos justamente quando dirigimos nosso olhar para os mundos espirituais: Por que deixamos o mundo espiritual e nascemos dentro deste mundo físico? Ora, nascemos neste mundo físico - e amanhã e depois da amanhã exporei mais detalhadamente o que agora estou esboçando - porque aqui na Terra há coisas a serem conhecidas e vivenciadas que não podem ser vivenciadas nos mundos espirituais, que para vivenciá-las é necessário que desçamos ao mundo físico, e porque os resultados dessas vivências no mundo físico devem ser levados para os mundos espirituais. Para alcançar isso, devemos mergulhar com o nosso espírito no mundo físico procurando conhecimento. Precisamos mergulhar no mundo físico por causa do mundo espiritual.


Para expressar de modo radical o que quero relatar, consideremos um homem normal da atualidade, que se alimenta honestamente, dorme durante um tempo adequado, faz o desjejum, almoça e janta, e assim por diante, e que também tenha interesses espirituais, tenha até interesses espirituais elevados que o levem a tornar-se membro, digamos, de uma sociedade teosófica, pois uma vez que tem interesses espirituais faz o possível para saber o que acontece nos mundos espirituais. Tomemos um homem que tenha na ponta da língua tudo o que se escreve na literatura teosófica atual, mas que vive segundo os hábitos de uma vida normal. Vejamos esse homem! O que significa todo o conhecimento que adquire com os seus elevados interesses espirituais? Significa algo que aqui na Terra pode proporcionar-lhe certa volúpia anímica interior, um prazer realmente luciférico mesmo que seja um prazer anímico refinado. Nada disso será levado através do portal da morte, nada disso atravessará o portal da morte. Pois entre essas pessoas - e existem muitas delas - podem existir aquelas que, apesar de saberem na ponta da língua o que é um corpo astral, um corpo etérico e assim por diante, não têm noção alguma do que acontece quando uma vela está acesa. Não têm noção dos “truques mágicos” realizados para que lá fora ande um bonde. Elas andam de bonde, mas não sabem nada dele. Mais ainda: elas têm na ponta da língua o conhecimento do corpo astral, do corpo etérico, do carma, da reencarnação, mas não têm noção do que se diz, do que se reivindica hoje, por exemplo, nas reuniões dos proletários. Isso não os interessa. Eles só se interessam pela aparência do corpo etérico, do corpo astral, eles não se interessam pelo caminho percorrido pelo capital, quando este é o verdadeiro poder dominante desde o começo do século XIX. Ter conhecimento do corpo etérico e do corpo astral de nada serve quando morremos. Deve-se dizer isso justamente a partir de um verdadeiro conhecimento do mundo espiritual.  Isso só terá valor quando o conhecimento espiritual se tornar o instrumento para mergulhar na vida material e recolher nela aquilo que não pode ser recolhido no mundo espiritual, mas que precisa ser levado para lá.
Hoje temos uma ciência ministrada nas mais diversas áreas de nossas universidades. Fazem-se experiências, pesquisas e assim por diante. Com essa ciência  alimentamos nossa técnica, também já curamos os seres humanos, fazemos tudo o que é possível. Paralelamente existem as crenças religiosas. Mas eu lhes pergunto: Já tomaram conhecimento do conteúdo dos sermões comumente proferidos nas tardes de domingo onde se fala, por exemplo, do reino de Cristo e de temas parecidos? Qual é a conexão entre a ciência e o que está sendo falado? Normalmente não há relação alguma. Os dois temas caminham paralelamente. Algumas pessoas acreditam ter a força adequada para falar sobre Deus, o Espírito Santo, e uma porção de outros assuntos.

Mesmo que digam que sentem estas coisas, elas falam em formas e concepções abstratas. Outros falam de uma natureza sem espírito. Não se faz nenhuma ponte! Mais recentemente recebemos um sem número de idéias teosóficas e místicas. Sim, mas estas idéias místicas falam de tudo que é distante da vida e não falam da vida humana, porque não têm a força de mergulhar na vida do ser humano. Pergunto se estaríamos falando da maneira correta sobre um criador do mundo, se o imaginássemos como um espírito belo e interessante que, porém, nunca poderia ter chegado a criar o mundo? Os poderes espirituais de que se fala muito hoje em dia, nunca teriam conseguido chegar a criar o mundo, porque os pensamentos que desenvolvemos em relação a eles não são capazes sequer de intervir no conhecimento que temos sobre a natureza, ou sobre a vida social dos seres humanos.
Talvez eu possa, sem deixar de ser modesto, explicar com um exemplo o que estou querendo dizer. Já disse muitas vezes durante conferências, e mencionei-o num dos meus últimos livros - “Os Enigmas da Alma” - , chamando a atenção para a tolice defendida pela Fisiologia moderna, portanto por uma ciência natural: A tolice de que há dois tipos de nervos no ser humano, os nervos motores, que são a base da vontade, e os nervos sensitivos, que são a base das percepções, das sensações. Desde que há a telegrafia, tomamos o seu mecanismo como imagem para explicar que, do olho, o nervo dirige-se para o órgão central, do órgão central ele vai para um membro qualquer. O impulso conduzido pelo nervo, que podemos imaginar como sendo uma espécie de fio telegráfico, vai desse órgão periférico, o olho, para o órgão central, quando então o impulso ativa o nervo motor e o movimento se realiza.


E se permite à ciência ensinar essa tolice. Não há possibilidade de evitar que a ciência natural a ensine, pois dentro de uma idéia espiritual abstrata fala-se de tudo que é possível, mas não se desenvolvem pensamentos que poderiam intervir de maneira positiva nos processos da natureza. Nos conceitos espirituais atuais não há força para desenvolver um conhecimento sobre a própria natureza. Não existe tal diferença entre nervos motores e sensitivos; os nervos denominados volitivos, também são sensitivos, existem somente para que tenhamos a percepção dos próprios membros quando estes se movem. O exemplo clássico do tabe  demonstra exatamente o contrário do que deve ser provado. Não me aprofundarei nisso agora porque os senhores não têm os conhecimentos fisiológicos necessários para esse tema. Mas eu gostaria de falar uma vez sobre esses assuntos para um grupo de pessoas com conhecimentos fisiológicos e biológicos. Aqui quero chamar a atenção apenas para o fato de que, se por um lado temos uma ciência, por outro lado temos discursos e sermões sobre os mundos espirituais que não penetram nos processos em quaisquer mundos reais que existem na natureza. Mas é justamente disso que necessitamos. Necessitamos de um conhecimento do espírito que seja tão forte que possa, ao mesmo tempo, tornar-se ciência. Ela só será alcançada se considerarmos o querer para o qual quis chamar sua atenção hoje. Se nossa intenção tivesse sido fundar um movimento sectário que tem somente um dogma sobre o divino e o espiritual, e que necessita de um edifício, teríamos erigido ou mandado erigir um edifício qualquer. Como não é isso o que queríamos, pois nossa intenção era mostrar, já a partir da ação exterior, que queremos mergulhar na vida, tivemos que conceber essa obra inteiramente a partir do querer da Ciência Espiritual. Nos detalhes dessa construção se verá que realmente os princípios importantes que hoje, sob a influência dos dois dualismos mencionados, são compreendidos do modo mais errado possível, poderão ser colocados sobre um alicerce adequado. Quero chamar a sua atenção para só mais um fato.


Observem as sete  colunas  alinhadas  de  cada  lado  de  nosso edifício principal (desenha): acima estão os capitéis, embaixo  os  pedestais.   Elas  não  são   iguais,  cada   uma  desenvolve-se  a  partir  da  


anterior. Assim, poderão compreender o segundo capitel se mergulharem vivamente nas formas do primeiro, se tornarem viva a idéia da metamorfose como algo orgânico, e chegarem a ter um pensamento tão vivo que ele não seja abstrato mas que siga o crescimento. Então serão capazes de ver o segundo capitel  desenvolvendo-se a partir do primeiro, o terceiro do segundo, o quarto do terceiro e assim por diante, até o sétimo. Desse modo foi feita a tentativa de desenvolver com uma metamorfose viva um capitel, uma peça da arquitrave, e assim por diante, a partir do outro; de reproduzir a criação que vive na própria natureza como criação espiritual que faz com que, na natureza, uma forma se origine da outra. Tenho a sensação de que nenhum capitel poderia ser diferente do que é agora.


Mas algo muito estranho revelou-se com isso. Quando as pessoas falam hoje de evolução, muitas vezes dizem: Desenvolvimento, desenvolvimento, evolução: primeiro o imperfeito, depois algo um pouco mais perfeito, algo mais diferenciado e assim por diante, sendo que as coisas mais perfeitas seriam também as mais complicadas. Mas não pude realizar isso quando deixei que os capitéis se formassem pela metamorfose. Quando cheguei ao quarto capitel, percebi que esse teria que ser o mais complicado em relação ao quinto, ou seja, ao capitel seguinte, que deveria ser mais perfeito. Isto é, quando não segui, como Haeckel ou Darwin, os assuntos abstratos apenas em pensamentos, mas quando tive de fazer as formas de modo que uma forma saísse da anterior - assim como na própria natureza uma forma sucede a outra a partir das forças vitais - vi-me obrigado a fazer as superfícies da quinta forma mais artísticas do que na quarta, embora não mais complicadas; a forma tornava-se mais simples. E a sexta ficava mais simples ainda e a sétima novamente mais simples. Assim revelou-se-me que evolução não é um progredir para cada vez mais diferenciações (desenha a linha reta na lousa), mas que a evolução é um crescer até um ponto mais alto, mas que em seguida volta a cair para estruturas cada vez mais simples.


              Isso resultou dos próprios trabalhos. Pude ver como o princípio da evolução que resulta do trabalho artístico é exatamente o mesmo que o princípio da evolução na natureza.


Se observarem o olho humano, verão que com certeza é mais perfeito que os olhos de muitos animais. Mas os olhos de certos animais são mais complicados que o olho do ser humano. Eles encerram dentro de si, por exemplo, certos órgãos cheios de sangue: A “espada”, o “leque”, que não existem no ser humano, que, de certo modo, se dissolveram. O olho humano é simplificado em relação à estrutura de certos olhos animais. Seguindo o desenvolvimento do olho descobriremos que primeiro é primitivo, simples, depois torna-se cada vez mais complicado, depois volta a simplificar-se e o mais perfeito não é o mais complicado, mas novamente algo mais simples do que a forma no centro do processo evolutivo.


Vimo-nos forçados a fazer dessa maneira ao criar artisticamente o que uma necessidade interior nos mandava fazer. A meta não era pesquisar algo, mas procuramos buscar a própria ligação com as forças vitais. E aqui na nossa obra procuramos configurar as formas de modo que nessa configuração atuassem as mesmas forças que, como espírito da natureza, fundamentam essa natureza. Procuramos um espírito que fosse realmente criativo, que vivesse dentro das produções do mundo, que não apenas pregasse. Isso é o essencial. Essa é também a razão pela qual foram rejeitadas diversas propostas daqueles que queriam decorar nossa obra com uma variedade de símbolos e coisas semelhantes. Não há um único símbolo na obra: tudo são formas que foram recriadas a partir da criação do espírito na própria natureza.


Com isso foi dado o ponto de partida de um querer que precisa encontrar sua continuidade. E é de se desejar que justamente esse ponto de vista seja compreendido, que seja compreendido como, de fato, devem ser procuradas a fontes primordiais das intenções e criações do ser humano necessárias à humanidade moderna em todas as áreas. Hoje vivemos no meio de reivindicações. Mas tudo são reivindicações individuais, que brotam dos diversos círculos da vida. Precisamos também de uma coordenação que não pode vir de qualquer coisa que paire ao redor da existência exterior visível, pois tudo que é visível tem o invisível como sua base, e isso deve ser compreendido hoje. Quero dizer: Deveríamos olhar atentamente para essas coisas que acontecem hoje em dia, e chegaremos a acreditar que não é tão absurdo o pensamento de que o antigo está desmoronando. Então deve haver algo para tomar o seu lugar. Mas para familiarizarmo-nos com essa idéia, necessitamos de uma coragem que não pode ser adquirida na vida exterior, mas que precisa ser adquirida interiomente.


Não quero definir, quero somente caracterizar essa coragem. As almas adormecidas de hoje com certeza ficarão encantadas se aparecer alguém que saiba pintar como Rafael ou Leonardo. Isto é compreensível. Mas hoje temos que ter a coragem de dizer que somente aquele que sabe que hoje não se pode, nem se deve criar como Rafael e Leonardo criaram tem o direito de admirar Rafael ou Leonardo. Para concluir, diremos algo muito burguês para ilustrar o fato: Somente aquele que não acreditar que o teorema de Pitágoras devesse ser descoberto hoje, tem o direito de reconhecer hoje a extensão espiritual desse teorema. Cada coisa tem o seu tempo, e as coisas devem ser compreendidas a partir do tempo concreto.


Hoje realmente necessitamos mais do que algumas pessoas se dispõem a criar, mesmo quando se ligam a qualquer movimento espiritual: Hoje é preciso reconhecer que é necessário posicionarmo-nos perante uma renovação da existência do desenvolvimento da humanidade. É fácil dizer que nosso tempo é um período de transição. Toda época é um período de transição, depende somente de sabermos o que está em transição. Então não quero afirmar essa trivialidade de que nosso tempo é um tempo de transição, mas quero dizer outra coisa: Sempre falamos que a natureza e a vida não dão saltos. Somos muito sábios ao falar de desenvolvimento progressivo, de que não há saltos em lugar algum! Bem, a natureza dá saltos o tempo todo. (Desenha).

Ela forma gradualmente a folha verde, ela a transforma numa sépala, depois em pétala colorida, estames e pistilo.

   
               A natureza faz saltos seguidamente, durante a formação de uma única  configuração, a  vida  mais  ampla  constantemente  faz reviravoltas. Vemos  como, na vida humana, apresentam-se condições totalmente novas com a troca dos dentes, e como o mesmo acontece com a puberdade. E se a capacidade de observação dos homens  modernos  não  fosse  tão  tosca, veríamos uma terceira época na  vida  humana, por volta dos vinte anos, e assim por diante.


Mas a própria História também é um organismo onde esses saltos acontecem. Passamos ao lado deles sem notá-los. Os homens atuais não têm consciência do salto significativo que aconteceu na virada dos séculos XIV e XV ou, na verdade, em meados do século XV. Mas o que se introduziu naquela época quer realizar-se nos meados de nosso século.  E realmente não é devaneio, mas algo que acompanha todas as verdades exatas, se dissermos que os acontecimentos que movem a humanidade e alcançaram tal culminação nos últimos tempos, tendem a algo que podemos descobrir preparando-se e irrompendo vigorosamente na evolução da humanidade na metade desse século. Estes assuntos deveriam ser estudados pelas pessoas que não pretendem impor ideais para o desenvolvimento da humanidade a partir de alguma arbitrariedade qualquer, mas que, com as forças criativas do universo, querem encontrar a Ciência Espiritual que depois também pode fluir para a vida.