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Textos de Rudolf Steiner

A MISSÃO DE MICAEL (apostila) - Quarta Conferência

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Rudolf Steiner  

Dornach, 28 de novembro 1919

 

Com referência a vários assuntos que tratei nas conferências proferidas na semana passada, hoje gostaria de dizer algo preparatório para o que será desenvolvido amanhã e depois de amanhã. Trata-se de trazermos à memória, de modo diferente do que temos feito até agora, vários assuntos dos quais necessitaremos para prosseguir com o nosso tema atual.


Para obter clareza sobre o desenvolvimento da Terra, a melhor maneira é observar e ordenar os acontecimentos em relação ao ponto principal deste desenvolvimento. Com essa ordenação introduzimos uma certa estrutura em tudo no que o ser humano está inserido em seu próprio desenvolvimento por intermédio do desenvolvimento da humanidade. Esse ponto principal é, como os senhores já sabem, o Mistério do Gólgota, graças ao qual todo o resto do desenvolvimento da Terra adquiriu  seu sentido, seu verdadeiro conteúdo interior.


Voltando ao desenvolvimento da humanidade ocidental, que recebeu do Oriente, como um impacto, o impulso do Mistério do Gólgota, teremos que dizer: Aproximadamente no século V antes do Mistério do Gólgota começa, a partir da cultura grega, uma certa preparação para este Mistério. Podemos dizer que existe uma certa característica homogênea no pensar, sentir e querer gregos através de aproximadamente quatro séculos e meio antes do Mistério do Gólgota. E essa característica homogênea é introduzida pela figura de Sócrates , prossegue na cultura grega, (na verdade essa característica também é perceptível nas artes), segue com a personalidade grandiosa, proeminente de Platão , e depois adquire, em Aristóteles , um caráter, eu diria, mais científico.


Os senhores sabem, com base nos vários relatos que fiz, que a Idade Média, principalmente depois de Agostinho , fez um grande esforço para utilizar a indicação que podia ser obtida do modo de pensar de Aristóteles, para compreender tudo o que tivesse relação com o Mistério do Gólgota, sua preparação e suas conseqüências. O pensar grego tornou-se tão importante inclusive para o desenvolvimento cristão no Ocidente, até o fim da Idade Média, porque foi utilizado para penetrar no conteúdo do Mistério do Gólgota. É muito importante compreender claramente o que realmente aconteceu na Grécia durante os últimos séculos antes do Mistério do Gólgota.


O que se desenrolou no pensar, sentir e querer do homem grego é, na verdade, o desfecho de uma cultura antiga que hoje não é mais reconhecida pela humanidade. Realmente não podemos ver essas coisas sob uma luz correta em nossas contemplações históricas, pois essas contemplações não alcançam aqueles tempos em que uma cultura de Mistérios estendia-se por toda a Terra civilizada e, no fundo, permeava todo o querer e sentir humanos. Temos que voltar atrás aos milênios que a história já não alcança, voltar com os métodos que o senhores encontrarão esboçados na minha “Ciência Oculta”, para ver de que espécie era essa cultura primordial da humanidade. Ela tinha sua fonte nos antigos Mistérios, cujo acesso era permitido àquelas pessoas que as grandes personalidades, os líderes acreditavam estarem objetivamente aptas para uma iniciação imediata. Por sua vez, por meio desses iniciados fluía para os outros homens aquilo de que eles compartilhavam como conhecimento dos Mistérios. No fundo, não podemos compreender toda a cultura antiga se não considerarmos o solo nativo da cultura de Mistérios. Se tivermos interesse, em Ésquilo  ainda podemos ver claramente esse solo original dos Mistérios. Também podemos percebê-lo na Filosofia de Platão. Mas o que a humanidade recebeu por meio dos Mistérios como revelações sobre o elemento divino, perdeu-se historicamente. Encontra-se somente da forma mais primitiva naquilo que se tornou cultura historicamente demonstrável. Bem, o que aconteceu pode ser compreendido de forma correta se ficar claro o que sobrou, na época pós-socrática do helenismo, daquela cultura primordial dos Mistérios em que se enraíza também o helenismo. Restou uma certa maneira de pensar, uma certa forma de representação mental.


Os senhores sabem que a História exterior conta que Sócrates fundou a Dialética, que ele foi o verdadeiro mestre do pensar, daquele pensar que Aristóteles desenvolveu depois para um pensar mais científico. Tudo o que constituiu a maneira grega de pensar e representar é somente uma ressonância final da cultura de Mistérios, pois essa cultura tinha muito conteúdo. Fatos espirituais, que são as causas fundamentais da nossa ordem universal, foram assimilados conceitualmente na concepção integral do homem. Os grandes, imensos conteúdos foram se apagando. Mas a maneira de pensar desenvolvida pelos discípulos dos Mistérios, o modo de representação mental, a configuração do pensar permaneceram, e foram eles que, na verdade tornaram históricos primeiramente no pensamento grego, depois o pensamento medieval, o pensamento dos teólogos cristãos que adotaram para sua Teologia sobretudo o modo de pensar grego para, a partir da prática do pensar com as formas de pensamento, com as idéias e conceitos que no fundo eram uma continuação do pensamento grego, compreender o que fluíra para o mundo com o Mistério do Gólgota. A Filosofia medieval, chamada Escolástica, é a confluência das verdades espirituais do Mistério do Gólgota com o pensamento grego. A elaboração, o estudo profundo do Mistério do Gólgota se fez, na verdade (tomando a liberdade de expressar-me de forma trivial), com a ferramenta do pensamento grego, da Dialética grega. Até o Mistério do Gólgota passaram-se mais ou menos quatro séculos e meio desde a perda do conteúdo dos Mistérios, desde o surgimento do elemento apenas formal, apenas intelectual. Podemos dizer aproximadamente quatro séculos e meio. Devemos imaginar, então, que numa época pré-histórica a cultura de Mistérios estendia-se sobre a Terra civilizada daquele tempo. Ela continuou a desenvolver-se de tal forma que só restaria uma condensação, a Dialética grega, o pensamento grego. Ocorre o Mistério do Gólgota. No mundo ocidental ele é compreendido inicialmente por meio da Dialética grega. Quem quiser familiarizar-se com a ciência ainda sustentada pela Teologia, digamos ainda dos séculos X, XI, XII, XIII, XIV, terá que organizar seu pensar de forma diferente daquela que a humanidade atual está acostumada a usar partindo das maneiras de representar científicas. As pessoas que hoje em dia julgam a Escolástica, não podem fazer-lhe justiça porque, no fundo, foram educadas da maneira científica, e a Escolástica exige uma formação de pensamento diferente da formação científica atual.


Vivemos num momento em que novamente se passaram quatro séculos e meio desde que esse outro modo de pensar, o pensamento científico tomou posse da humanidade. Por volta da metade do século XIV, as pessoas no mundo ocidental começam a pensar da maneira como encontramos claramente desenvolvida em Galilei , ou em Giordano Bruno . Isso vem sendo trazido até os nossos tempos. Sim, parece ser a mesma lógica que a lógica grega, mas é uma lógica totalmente diferente. É uma lógica que foi aos poucos copiada dos acontecimentos da natureza, da mesma forma como a lógica grega foi copiada do que os discípulos dos Mistérios, os místicos, visualizavam nos Mistérios.


Vamos esclarecer agora a diferença que existe entre os quatro séculos e meio antes do Mistério do Gólgota no mundo grego, quase o único civilizado, e nossos quatro séculos e meio em que a humanidade foi educada pela formação científica. Posso mostrar-lhes isso melhor de forma gráfica (Começa a desenhar):


Imaginem a Cultura de Mistérios como sendo o topo de uma montanha que representa a cultura espiritual da humanidade em tempos muito remotos (branco). Essa cultura de Mistérios transforma-se depois, na Grécia - descreverei isso depois, com a cor - , em Lógica, até o Mistério do Gólgota (linha de traços vermelha até a primeira linha vermelha vertical).


 

Depois continua na Idade Média com a Escolástica (linha branca até a segunda linha vermelha vertical). Aí (chave vermelha superior) temos o último resquício, essa reminiscência da antiga cultura de Mistérios durante quatro séculos e meio (acima da chave vermelha escreve 4 ½ séculos). E agora, desde o século XV, começa uma nova forma de representação mental que poderíamos chamar galiléica. Estamos mais ou menos à essa mesma distância do ponto de partida (pequeno círculo vermelho e terceiro traço vermelho vertical) que o lapso de tempo que passou desde o surgimento dessa forma de pensar grega até o Mistério do Gólgota (chave vermelha inferior antes do primeiro traço vermelho vertical).  Mas enquanto isso é um desfecho (arco branco debaixo da chave vermelha inferior), de certa forma um crepúsculo, nós estamos lidando com um prelúdio  (arco branco entre o terceiro e o quarto traço vermelho e 4 ½ séculos), com algo que deve desenvolver-se, que teremos que elevar a uma certa altura. A cultura grega estava num fim. Nós estamos num início.


Somente compreenderemos totalmente essa colocação de um fim e de um começo se observarmos o desenvolvimento da humanidade de modo científico-espiritual a partir de um certo ponto de vista.


Já lhes referi várias vezes que não é à toa que hoje em dia se procura aquele auto-conhecimento da humanidade que pode ser fornecido pela Ciência Espiritual orientada pela Antroposofia. Pois a grande maioria da humanidade está diante de uma possibilidade futura muito significativa. Vejam, é necessário que levemos a sério o fato de que a humanidade em desenvolvimento progressivo através da História é um organismo em desenvolvimento progressivo. Assim como num organismo individual ocorre o amadurecimento sexual, e mais tarde também há épocas de transição, também na História da humanidade existem épocas de transição. Ao ensinamento das repetidas encarnações as pessoas, hoje, sempre contrapõem a objeção: sim, mas os homens não se lembram de sua encarnação passada.                                      

                  
Quem compreender a história da evolução da humanidade da forma que indiquei, como um organismo, não deveria admirar-se - se realmente prestar atenção objetiva a essa história da evolução – de que os homens não se lembrem de sua encarnação passada no âmbito do conhecimento comum. Pois eu lhes pergunto: o que um homem realmente lembra na sua vida comum? Aquilo em que ele pensou antes. O que ele não pensou, ele não lembra. Pensem nos tantos acontecimentos que, durante um dia, passam desapercebidos aos senhores. Não se lembram deles porque não os pensaram, mesmo que talvez tenham acontecido à sua volta. Podem lembrar-se somente do que pensaram. O desenvolvimento da humanidade, nos séculos e milênios mais antigos, não ocorreu de forma a permitir que os seres humanos compreendessem claramente o ser do homem. Existe, aliás, como uma saudade desde o pensamento grego, o “conhece-te a ti mesmo”, mas esse “conhece-te a ti mesmo” poderá ser realizado somente por meio de um verdadeiro conhecimento espiritual.  Somente quando o ser humano utilizar uma vida (condição para a qual o homem tornou-se maduro somente no nosso tempo) para conseguir captar o próprio ser em pensamentos, somente assim a memória será preparada para a próxima encarnação. Pois temos que ter pensado antes o que queremos recordar depois. Somente os homens que em tempos antigos puderam olhar objetivamente para o próprio ser por meio da iniciação (que não precisa ser adquirida sempre nos Mistérios) poderão, na atualidade, olhar realmente para trás e ver encarnações anteriores - e não são poucas as pessoas que conseguem fazê-lo. Mas o fato é que os seres humanos estão passando por uma transformação em relação ao seu desenvolvimento puramente físico. Isso não pode ser observado exteriormente no físico, mas apenas de forma científico-espiritual.  A humanidade não é hoje como era há dois mil anos atrás em relação à sua constituição física, e daqui a dois mil anos novamente não será como é hoje. Já falei várias vezes sobre este assunto.  Os seres humanos estão vivendo num tempo que se dirige ao futuro, em que (se permitem que me expresse de forma banal) os cérebros humanos serão construídos de forma diferente da que são construídos hoje, com relação ao seu exterior. O cérebro possibilitará a lembrança de vidas terrenas anteriores. Mas as pessoas que hoje não se prepararem, por meio de reflexões sobre o próprio ser, sentirão essa habilidade, que neles será mecânica, somente como uma espécie de nervosismo interior - para usar a expressão atual; eles a sentirão como uma deficiência interior. Não encontrarão o que lhes falta, porque  a humanidade nesse meio tempo terá amadurecido em relação à sua corporalidade para recordar suas vidas terrenas passadas. A pessoa que não tiver se preparado para essa retrospectiva, não conseguirá recordar. Sentirá, então, essa habilidade somente como uma deficiência. Por isso, o verdadeiro reconhecimento das forças atuais de transformação da própria humanidade depende do fato de os homens serem levados ao auto-conhecimento pela Ciência Espiritual orientada pela Antroposofia. Gostaria  somente de mencionar que é possível indicar como será essa vivência especial que levará o homem a levar em conta as encarnações passadas.


Ainda vivemos numa época em que aquelas nuanças de sensações que se tornarão cada vez mais presentes, existem somente em poucas pessoas, mas são pressentidas por essas poucas pessoas. Hoje essas nuanças de sensações ainda não são devidamente notadas. Quero descrevê-las aos senhores na forma em que aparecerão um dia. Os seres humanos nascerão no mundo e dirão: Sim, serei educado consciente ou inconscientemente para um certo modo de pensar, pela convivência com os outros seres humanos. Surgem pensamentos em mim. Nascerei e serei educado dentro de um certo tipo de representação mental. Mas ao mesmo tempo observo o em-torno exterior: meu pensar, minha representação mental não combinam bem com o mundo exterior à minha volta. Essa nuança de sensação já está presente, hoje, em algumas pessoas. Elas são obrigadas a pensar numa direção que faz com que tenham a impressão de que a natureza exterior quer dizer-lhes algo totalmente diferente, que a natureza exterior exige algo bem diferente delas. As pessoas que sentiram a discrepância entre aquilo que são obrigadas a pensar, e aquilo que a natureza exterior lhes diz, sempre foram ridicularizadas. Hegel  é um exemplo clássico. Ele expressou certos pensamentos (nem todos os pensamentos hegelianos são tolos) sobre a natureza, organizando-os sistematicamente. Vieram então os filisteus e disseram: sim, essas são as suas idéias sobre a natureza mas veja, esse ou aquele acontecimento na natureza não é assim. Hegel então disse: Pior para a natureza.


Isso naturalmente parece ser totalmente paradoxal, entretanto existe, de forma subjetiva, algo bem fundamentado nessa sensação. É possível que nos deixemos levar por um lado pelo pensamento inato e dizer: a natureza, na verdade, teria que tomar outra forma se realmente correspondesse a esse pensamento. Depois de um tempo, porém, chegaremos a nos acostumar com o que pode ser observado na natureza. A maioria das pessoas não percebe que, justamente quando chegou ao amadurecimento para observar o que compreendeu na natureza tem, no fundo, uma espécie de alma dupla, realmente algo como duas verdades. Aqueles que já o percebem claramente podem sofrer muito com isso, porque dessa forma uma discrepância é introduzida na alma. Mas o que eu descrevo agora, o que existe hoje em poucas pessoas, mas que nelas existe mesmo que muitas vezes não o vejam, prevalecerá cada vez mais. Os homens dirão cada vez mais: da forma como nasci, minha cabeça me força a fazer uma imagem da natureza. Mas essa imagem não corresponde verdadeiramente à natureza. Então começo a viver, e no decorrer do tempo também me aproprio daquilo que a natureza expressa. Devo então encontrar uma saída.


Nossas almas terão essas sensações discrepantes especialmente quando voltarem novamente para a Terra. Surgirá então um tipo de fonte interior de pensamentos e sensações, em virtude da qual diremos: Sim, você sente como o mundo deveria ser na verdade, mas ele não é assim, ele é diferente. Depois nos familiarizaremos com esse mundo novamente, conheceremos uma segunda espécie de regularidade e teremos que procurar um equilíbrio. Em que se baseará isso?


Considerem (começa a desenhar): o homem passa, através nascimento, para a existência física. Ele traz consigo o resultado de seu pensar e sentir da encarnação passada. Enquanto não  estava ligado a  esta

encarnação, a vida terrestre exterior, de certa forma, realmente mudou. Ele sente a discrepância do pensar - cujos efeitos trouxe de sua encarnação passada - , que não corresponde à transformação das coisas nesse tempo em que esteve ausente da Terra. E agora ele vai se adaptando aos poucos à sua nova vida, e não apreende completamente na sua consciência o que pode observar no mundo à sua volta.  Só o capta veladamente. Só o assimila depois da morte, depois o carrega para a próxima vida. O homem sempre viverá nessa dualidade da vida anímica. Ele sempre perceberá: Você traz algo para o qual o mundo é novo, este mundo ao qual você se adapta como homem físico. Mas por meio do seu ser físico você capta algo desse mundo que não penetra logo, completamente, na alma, algo que você terá que assimilar novamente depois da morte.


O ser humano da atualidade deveria intensificar essa forma de perceber o mundo,  pois somente reconhecendo isso descobrirá as forças que pulsam através de sua existência e que, de outra forma, passam desapercebidas.  Estamos entretecidos em sua trama. Mas se não tentarmos  permear essas forças com a consciência, elas permanecerão no subconsciente e, até certo ponto, nos adoecerão animicamente. O ser humano perceberá cada vez mais o conflito entre o que ficou da vida passada e o que, durante essa vida, é preparado para a próxima. E pelo fato de sentir cada vez mais essa dualidade, ele necessitará de um mediador interior verdadeiro. Tornar-se-á cada vez mais urgente a grande pergunta: como o  homem chegará a essa mediação interior? Para essa pergunta só encontraremos uma resposta se pensarmos no seguinte:


Já mencionei várias vezes que os seres humanos, na vida comum, estão totalmente acordados para sua vida das representações mentais somente no período entre o despertar e o adormecer. (A seguir escreve na lousa a parte superior do esquema da página 45.) A vida das representações mentais corresponde à vigília. Mas em relação à nossa vida de sentimentos não estamos despertos, mesmo quando estamos acordados. Dentro de nossa consciência, nossos sentimentos estão no mesmo degrau em que estão os sonhos, mesmo que nossas representações mentais e pensamentos estejam totalmente despertos. Quem souber investigar esse campo sabe, por experiência própria, que em nossa consciência os sentimentos não são mais nítidos do que os sonhos, mas a representação mental que nos apresenta os sentimentos faz com que isso pareça diferente. Mas a vida de sentimentos, como tal, surge das profundezas da consciência de tal forma que o que sobe à tona parece um sonho. E a vontade em sua verdadeira vida significa algo que dorme em nós, mesmo que estejamos acordados. Em relação ao querer, dormimos. De forma, então, que carregamos em nós esses três estados de consciência, mesmo estando acordados. Andamos durante o dia despertos em nossa vida de representações mentais, iludimo-nos pensando que estamos despertos também na nossa vontade porque temos representações mentais daquilo que a nossa vontade realiza. Mas o que a vontade vivencía não emerge à nossa consciência, somente a imagem da representação mental. Sonhamos nos nossos sentimentos, passamos dormindo em nossas vontades. Mas quando trazemos à tona, por meio do conhecimento imaginativo, o que de outra forma apenas sonha nos sentimentos, quando o trazemos para um conhecimento universal completo, claro, então percebemos: não existe sabedoria somente nas nossas representações mentais e pensamentos (podemos denominá-lo assim tecnicamente, mesmo que em muitas pessoas isso seja falta de sabedoria); há sabedoria nos nossos pensamentos, mas também nos nossos sentimentos, e também existe sabedoria em nossa vontade. (Durante essa explicação escreveu  três vezes “sabedoria” na lousa.)


Vida das representações mentais:      vigília total:              sabedoria
Sentimentos:                                  sonhar:                  sabedoria 
Vontade:                                       dormir:                   sabedoria      


            Em relação à existência humana atual só podemos, de fato, falar claramente sobre a vida das representações mentais. A humanidade quase não tem mais idéias sobre o que vive na vida dos sentimentos do que tem sobre a vida dos sonhos, e apesar disso há sabedoria nela.


Para aquele que aplica seriamente, em sua própria alma, os exercícios descritos em meu livro “Conhecimentos dos mundos superiores”, haverá mais possibilidade de conhecer um certo movimento anímico interior, que de certo modo transcorre de forma sonhadora, que para a maioria das pessoas transcorre de forma sonhadora, que não tem muito mais regularidade do que o sonhar comum. Mas é possível introduzir rapidamente tanta ordem nessa vivência interior, que então percebemos: Não é a mesma lógica que rege essa vivência interior - às vezes reina uma lógica muito grotesca, e os diversos farrapos de pensamentos ordenam-se e transcorrem de forma sonhadora, às vezes parecem regidos por uma lógica estranha  - , mas o fato de que algo transcorre lá dentro pode ser percebido como primeira vivência interior, ainda bastante primitiva, pela pessoa que aplica na sua vida anímica um pouco daquilo que descrevi em meu livro “Conhecimento dos mundos superiores”. Quando o homem mergulha nesse mar de sonhos despertos surge, de fato, uma nova realidade em contraposição à realidade comum da vida exterior. O homem poderá, então, perceber relativamente depressa que aí surge uma nova realidade. Ele poderá perceber com relativa rapidez que nessa totalidade também há sabedoria, mas uma sabedoria que ele não consegue captar,  para a qual ele não se sente maduro o suficiente para trazê-la totalmente à consciência. Ela lhe escapa seguidamente, e ele não sabe o que isso significa. E assim o homem percebe, ou pelo menos pode perceber, que a sabedoria não flui somente através da camada superior de sua consciência, que o permeia na vida diária comum vígil, mas que por baixo há outra camada de sua consciência que só lhe parece ilógica porque ele mesmo a chama assim, por não conseguir captar ainda a sua sabedoria. Podemos dizer: No momento em que assimilamos completamente o conhecimento imaginativo, esses sonhos despertos deixam de ser tão grotescos como parecem ser na vida comum, permeiam-se com uma sabedoria que somente indica um conteúdo diferente da realidade, um mundo diferente do mundo sensorial e que não abarcamos com a sabedoria comum.


Na vida comum, em nossa consciência do dia-a-dia surge somente o mundo de sentimentos que sobe dessa camada inferior da consciência. De uma camada inferior,  que fica abaixo dessa, emerge o mundo da vontade, que também é completamente permeado por sabedoria. Também estamos ligados com essa sabedoria, mas não conseguimos realmente trazê-la para a nossa consciência comum. Podemos dizer então: Como seres humanos, somos governados por três camadas de consciência. A primeira é a nossa consciência das representações mentais, em que vivemos todos os dias. A segunda é a consciência imaginativa. E a terceira é a consciência inspirativa que fica, porém, bem profunda, que na verdade atua em nós, mas cuja característica não reconhecemos na vida comum. (Escreve na lousa.) 


     I  Consciência das representações mentais
    II  Consciência imaginativa
   III  Consciência inspirativa

Se a nossa filosofia atual não tivesse tanta dificuldade em entender (não falo daqueles que não têm nada a ver com essa filosofia, mas dos filósofos que deveriam compreender essas coisas, mas não o fazem hoje em dia), perceberia nitidamente a grande diferença que existe entre as verdades que observamos fundamentados meramente nas observações da natureza, e aquelas que encontramos nas ciências, por exemplo, na Matemática e na Geometria, com as quais procuramos compreender a natureza exterior.


Temos um certo direito de dizer: nunca poderemos falar de certeza em relação às verdades que o homem assimilou por meio de observações exteriores (isso foi tão repetido na história da filosofia que na verdade, para os filósofos, deveria ser supérfluo expor essas coisas). Kant ou Hume já expuseram isso claramente, afirmando até grotescamente: observamos que o sol se levanta, mas não temos o direito de afirmar, a partir da observação, que o sol também se levantará amanhã. Assim é com as verdades que derivamos exteriormente das observações. Mas não é assim, por exemplo, com as verdades matemáticas. Tendo-as compreendido, sabemos que valem para todo o futuro. Quem souber comprovar, a partir de razões interiores, que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos dois catetos, sabe que ninguém conseguirá desenhar um triângulo de ângulo reto para o qual isso não seja válido.


Essas verdades matemáticas são diferentes das verdades que conhecemos a partir de observações exteriores. Sabemos desse fato, mas com os métodos usados pelas pesquisas de hoje não estamos em condições de compreender a razão. A razão está em que as verdades matemáticas saem do fundo do ser humano, que a verdade matemática provém da terceira consciência, da camada mais profunda da consciência, e sem que o homem sequer suspeite, algo emerge à sua consciência superior onde, então, ele a vê interiormente. Possuímos as verdades matemáticas porque nos comportamos matematicamente no mundo. Ficamos em pé, andamos, e assim por diante, descrevendo linhas no espaço. Por intermédio dessa relação da vontade com o mundo exterior podemos chegar a ter o conhecimento interior da matemática. A matemática surge nas profundezas da terceira consciência (veja esquema pág. 45 ) e emerge dali.


Temos então, na verdade, uma idéia bem clara pelo menos dessa parte da consciência profunda, mesmo que nesse caso sua origem não se apresente à consciência comum: temos consciência dos conceitos matemáticos e geométricos que emergem. Somente a camada do meio tem um caráter sonhador, confuso. Lá na cabeça, onde se realiza a vigília comum, temos novamente clareza, e reconhecemos o que emerge da terceira camada da consciência. O que está entre as duas alcança a maioria dos homens somente sob a forma de um confuso sonhar acordado. É muito importante que tenhamos clareza sobre isso. Pois foi a essa consciência que os gregos estiveram especialmente ligados durante esses quatro séculos e meio. Eles assimilaram essa consciência I como sendo o que lhes restara da cultura de Mistérios. E essa é um elemento puramente luciférico. Recentemente descrevi isso aos senhores.  É a cultura intelectualista. Na cabeça há clareza. Ela está permeada por sabedoria, por uma sabedoria de validade universal. Mas é um elemento luciférico em nós.  (Escreve “luciférico” na lousa.) E novamente, o que está embaixo, o que os cientistas amam tanto, que Kant já amou tanto a ponto de dizer: “Somente há tanta ciência da natureza quanto há matemática nela”, isso é um elemento puramente arimânico que emerge do ser humano. É o elemento arimânico. (Escreve “arimânico” na lousa. O esquema está completo agora.)

       Vida das representações mentais:           vigília total:          sabedoria
       Sentimentos:                                      sonhar:                sabedoria
       Vontade:                                            dormir:                sabedoria
   
      I.  Consciência das representações mentais                    - luciférico
..........................................................................................................
      II.  Consciência imaginativa
       ...................................................................................................
     III.  Consciência inspirativa                                            - arimânico   

Não é suficiente que saibamos que algo está certo. Sabemos que as coisas que compreendemos intelectualmente na nossa cabeça estão certas, mas isso é um dom do elemento luciférico. E sabemos que a matemática é correta, mas devemos ao Árimã que está em nós essa poderosa certeza da matemática. E o elemento mais inseguro é o do meio. Parece que se constitui de ilógicos sonhos ondulantes.


Quero mostrar-lhes mais uma característica, para que compreendam a importância disso. No fundo, toda a penetração matemática do mundo, da forma em que surgiu através de Galilei, de Giordano Bruno,  provém dessa camada mais profunda da consciência. Quatro séculos e meio se passaram desde que nós assimilamos, nos esforçamos por introduzir em nosso pensar e sentir humanos esse elemento arimânico. Enquanto a mais clara consciência iluminava a última reminiscência da cultura de Mistérios do pensar grego, nas camadas mais profundas, mais escuras de nossa consciência ocorre o nascimento daquilo que atingirá seu auge somente no futuro.  Isso precisa emergir.


Nossa vida anímica realmente tem a forma do braço horizontal da balança que deve, em primeiro lugar, procurar o equilíbrio entre o elemento luciférico de um lado,  e o arimânico do outro. Só que o elemento luciférico está na cabeça lúcida, o elemento arimânico embaixo, na sabedoria que permeia nossa vontade. Entre eles temos que procurar o equilíbrio em algo que inicialmente parece não estar sendo permeado por algo.

 
Como penetra sabedoria nessa parte mediana do homem? Da forma como o ser humano está situado no mundo segundo sua cabeça, ele é mantido por Lúcifer; segundo sua sabedoria metabólica e dos membros, ele é mantido por Árimã. Mas segundo o coração - pois aquilo que é descrito como estado intermediário da consciência depende também da estruturação do coração com o ritmo humano (leiam no meu livro “Dos enigmas da alma” , como nossa intelectualidade tem a ver com a cabeça) –, nessa esfera de nossa existência deve entrar aos poucos uma ordem tão grande quanto a que entrou na sabedoria cerebral por meio da lógica cerebral, e a que entrou em tudo que sabemos de modo arimânico por meio da Matemática, Geometria, enfim, por meio de toda essa observação exterior racional da natureza.  De que modo entra nessa parte mediana do ser humano a lógica interior, a sabedoria interior, a capacidade de orientação? Pelo impulso de Cristo, por aquilo que passou a fazer parte da cultura da Terra por intermédio do Mistério do Gólgota.


Existe uma anatomia científico-espiritual que nos mostra o que é cultura da cabeça, que nos mostra o que é cultura do metabolismo, que nos mostra, também, o que é a esfera de estruturação que existe entre os dois, e do que esta precisa. Sermos permeados com o impulso de Cristo faz parte da nossa essência humana.


Então podemos dizer: tomemos uma vez como hipótese que o Mistério do Gólgota não tivesse ocorrido no desenvolvimento da Terra. O homem ainda teria a sabedoria da cabeça. Ele teria também o que emergiu desde o século XV. Mas ele estaria vazio e oco em relação ao seu ser mediano.  Ele perceberia cada vez mais o dilema entre as duas outras esferas interiores. Ele não seria capaz de estabelecer o estado de equilíbrio. Só podemos alcançar esse estado de equilíbrio ao permear-nos cada vez mais com o impulso de Cristo, que faz surgir o estado de equilíbrio entre os elementos luciférico e arimânico.


Assim os senhores vêem que é possível dizer: nesses quatro séculos e meio antes de Cristo, os últimos resquícios da antiga cultura de Mistérios que se fixaram como lembrança cerebral dessa cultura, foram doados ao homem como uma preparação para o Mistério do Gólgota. E nos tempos mais recentes, através de quatro séculos e meio, o ser humano passou por uma preparação para uma nova direção espiritual, para um novo tipo de cultura de Mistérios. Mas para que esses dois pudessem unir-se dentro da evolução histórica da humanidade, o Mistério do Gólgota teve que ser introduzido objetivamente na evolução da humanidade. Essa humanidade, observada exteriormente, mostra que os seres humanos foram crescendo até que, a partir do século XV, receberam aquele novo impulso  que lhes descrevi como um impulso de Árimã,  e por meio do qual os seres humanos perceberão cada vez mais que necessitam da possibilidade de construir uma ponte entre os dois períodos.


Dessa forma poderemos compreender interiormente o homem trimembrado. E conseguiremos compreendê-lo melhor ainda se unirmos o que eu disse hoje com algo que já mencionei várias vezes. Era impossível para o grego antigo, com seus últimos restos de uma antiga cultura de Mistérios (com exceção de alguns casos anormais, mas não no grau em que é possível em nossos tempos), ser ateu. O ateísmo é, no fundo, uma configuração mais recente, pelo menos em suas formações radicais. Pois o grego, que possuía a Dialética, sentia ainda a atuação do elemento divino no pensar, inclusive no pensar sem conteúdo.


Sabendo disso e olhando então para o surgimento do ateísmo, a negação total do elemento divino, chegaremos ao que fundamenta esse ateísmo. Os ateus (obviamente necessitamos métodos científico-espirituais para reconhecer isso) são somente aquelas pessoas nas quais algo orgânico não está em ordem; isso pode ocorrer nas relações estruturais muito sutis, mas é assim. O ateísmo é, na verdade, uma doença.


Essa é a primeira coisa que temos que ter em mente: o ateísmo é uma doença. Pois se o nosso organismo estiver completamente saudável,  a atuação conjunta de seus membros individuais fará com que nós próprios sintamos nossa origem divina - ex deo nascimur.


A segunda coisa, porém, é algo diferente. O ser humano pode perceber o elemento divino, mas não ter a possibilidade de perceber o Cristo. Hoje em dia essas diferenças sutis não são levadas em consideração. Satisfazemo-nos demais só com palavras também em outras áreas. Se examinarmos o conteúdo espiritual real de muitos homens ocidentais e não nos orientarmos pelas palavras (dizem que acreditam numa liberdade da vontade, e assim por diante), revelar-se-á que a configuração geral do pensar contradiz o que expressam. Acostumaram-se a falar de Cristo, da liberdade, e assim por diante somente em conexão com a cultura. Na verdade existe um grande número de pessoas entre nós, homens vivos, que são turcos, pois o conteúdo de seu credo é exatamente tão fatalista (mesmo que esse fatalismo muitas vezes seja descrito como uma necessidade da natureza) quanto o conteúdo do credo do maometano.  O maometismo está muito mais difundido do que supomos. Se não nos ativermos às palavras, mas ao conteúdo espiritual-anímico, veremos que alguns cristãos são na verdade turcos, muitos cristãos são turcos. E assim as pessoas denominam-se cristãs mesmo que não encontrem a transição entre o Deus que sentem e o Cristo.


Basta chamar sua atenção para um exemplo clássico de um teólogo moderno, Adolf Harnack, que escreveu “Wesen des Christentums” (A essência do Cristianismo). Por favor, façam a prova. No “Wesen des Christentums” risquem o nome de Cristo sempre que aparecer, e escrevam no seu lugar apenas o nome de Deus; isto não mudará em nada o conteúdo desse livro. Não há necessidade nenhuma que esse indivíduo relacione o que expressa neste livro com Cristo. Basta relacioná-lo genericamente com o Deus-Pai, fundamento do mundo. Não há necessidade que relacione aquilo que declara com o Cristo. Onde quer provar alguma coisa, não está sendo verdadeiro nem externa nem internamente, retirando dos Evangelhos mensagens isoladas. Da forma em que as utiliza no texto, não há razão para orientar-se pelo Cristo. Devemos poder compreender o Cristo de forma a não identificá-lo com o Deus-Pai. Muitos teólogos evangélicos mais novos já não conseguem reconhecer a diferença entre o conceito geral de Deus, e o conceito de Cristo. Não encontrar Cristo na vida é diferente de não encontrar Deus, o Deus-Pai. Os senhores sabem que aqui não se trata de forma alguma de questionar a divindade de Cristo. Trata-se somente de diferenciar  bem entre o Deus-Pai e o Deus-Cristo na esfera do elemento divino. Mas isto também se expressa na vida anímica do homem. Não encontrar o Deus-Pai é uma doença; não encontrar o Cristo é uma infelicidade. Pois o homem está ligado de tal forma ao Cristo, que ele depende internamente disso. Mas ele depende de algo que aconteceu como um fato histórico. Ele tem que encontrar na vida exterior aqui na Terra uma ligação com o Cristo. Se não o encontrar, será uma infelicidade. Ser ateu e não encontrar o Deus-Pai é uma doença. Não encontrar o filho de Deus, o Cristo, é uma infelicidade.


E o  que  significa  não  encontrar o  espírito?  Significa não  ter a  possibilidade  de captar a  própria espiritualidade para encontrar  a ligação  da própria  espiritualidade  com  a espiritualidade  do  mundo.  Isso  é debilidade   espiritual,  não reconhecer  o espírito  é uma debilidade anímica.
 Peço que lembrem dessas três deficiências da constituição anímica humana - então os senhores poderão seguir da forma correta essas contemplações - , que se recordem do que lhes disse sobre os três estados da consciência sob outro ponto de vista, e que se recordem que ser ateu, não encontrar o Deus do qual nascemos (que deveríamos encontrar se tivermos um organismo completamente saudável) é uma doença e não encontrar o Cristo é uma infelicidade, não encontrar o espírito é uma deficiência anímica.


Dessa forma diferenciamos também os caminhos do homem para a Trindade. E será cada vez mais necessário para a humanidade compreender esses assuntos concretos da vida anímica, e não ficar sempre nos assuntos gerais, difusos e nebulosos. Hoje temos uma tendência especial para essa nebulosidade. É uma tarefa essencial de nossa época substituir essa tendência à nebulosidade por uma tendência de penetrar novamente nos fatos concretos da vida anímica.