Textos Diversos
Do Arcanjo São Micael (Jacobus de Voragine)
Jacobus de Voragine
(Tradutores Bernardo Kaliks e Elizabete Canelada)
A tradução de Micael é: “O que é igual a Deus”. Sobre isso escreve São Gregório: “Quando deve acontecer um grande milagre, envia-se São Micael para que da própria obra e do nome revele-se que ninguém pode realizar obras tão grandes como Deus”. Por isso que a São Micael atribui-se tantas obras tão maravilhosas. Pois ele vai se levantar na época Anticristo, como escreve Daniel e será um defensor e protetor dos escolhidos; ele lutou com o dragão e seus anjos e os expulsou do céu para baixo e conseguiu um grande triunfo. Ele lutou com o diabo pelo cadáver de Moisés, o qual o diabo queria colocar para ser adorado pelos judeus como o seu Deus. Ele recebe também as almas dos santos e as leva ao paraíso das alegrias. Ele foi numa época, o príncipe da sinagoga, porém agora o Senhor tornou-o o príncipe da igreja. Como se diz, ele castigou os egípcios com as pragas, abriu o mar vermelho e dirigiu o povo através do deserto para a Terra Prometida. No exército dos Anjos santos, ele é o portador do estandarte de Cristo. Com grande força, ele matará o Anticristo, sob a ordem do Senhor, no monte das Oliveiras. A sua voz levantar-se-ão os mortos. No dia do Juízo Final, ele levará a cruz e os pregos, a lança e a coroa de espinhos.
A festa do santo Arcanjo Micael é chamada a sua aparição, seu triunfo, sua consagração e sua memória. A aparição de São Micael é múltipla. A primeira aconteceu no monte Gargano. Na Apúlia, na cidade chamada Siponto, existe um monte de nome Gargano.
E no ano do Senhor de 390, existiu nessa cidade, um homem que se chamava Gargano, cujo nome foi dado ao monte; alguns livros, porém, dizem que para ele foi dado o nome do monte; ele tinha uma grande quantidade de gado e ovelhas. Certa vez quando estes pastavam de um lado do monte aconteceu que um touro se separou dos outros e subiu ao pico da montanha. Quando o resto do gado voltou para casa, foi percebida a sua falta; ai o senhor levou um grupo de serviçais e o procurou por caminhos intransitáveis, e finalmente, encontrou o touro no pico do monte frente à entrada de uma caverna. Então, o senhor tornou-se impaciente pelo fato do touro ter se separado dos outros e disparou na direção dele uma flecha envenenada. Porém, a flecha voltou-se na direção do arqueiro como se um vento a tivesse desviado. Diante disso os habitantes da cidade assustaram-se e perguntaram ao bispo sobre esse grande milagre. O bispo ordenou um jejum de três dias e falou que devia se pedir à Deus que ele mesmo explicasse o que isso significava. Ao acontecer isso, apareceu São Micael ao bispo e falou: “Vocês devem saber que esse homem foi atingido pela sua flecha por minha vontade, pois eu sou Micael, o Arcanjo, e eu gostei de morar neste lugar da terra e protegê-lo. Com este sinal, então, eu quis mostrar que eu mesmo quero ser o protetor e guardião deste lugar”. Logo depois o bispo e os habitantes fizeram uma procissão para o local e oraram devotamente perante a caverna; porém, não se arriscaram a entrar nela.
A segunda aparição deve ter acontecido em torno do, ano 710 do nosso Senhor. No local que se chama Tumba, no mar, a seis milhas da cidade de Aprica, São Micael apareceu ao bispo dessa cidade e pediu a ele para construir uma igreja nesse local e celebrar aí a sua memória, como acontece no monte Gargano. O bispo ficou na dúvida onde ele deveria construir a igreja, então, se lhe revelou que ele deveria fazê-lo no local onde ele. Encontrasse um touro que ladrões haviam escondido. Depois disso, o bispo não sabia de que tamanho deveria ser a igreja; aí lhe foi solicitado fazê-la tão grande como as pegadas do touro que ele encontrasse no chão. Porém, no local havia dois rochedos que nenhuma força humana conseguia levantar. Então, Micael apareceu a um homem e lhe pediu para ir ao local e movimentá-los. O homem foi e levantou os rochedos do local como se não tivessem peso. Quando a igreja foi construída, foi trazida do monte Gargano uma parte do manto que o próprio São Micael havia colocado no altar e um pedaço da pedra de mármore sobre a qual tinha estado. Porém, não existia água no lugar, porém, às ordens do Anjo, cavou-se um buraco em um rochedo duro. De lá jorrou tal quantidade de água que formou uma fonte. A fonte continua a fluir até os dias de hoje, isso acontece pela graça de São Micael. Esta aparição é celebrada no dia 16 de outubro.
Na mesma cidade deve ter acontecido outro milagre que é digno da memória. Pois este monte está cercado de todos os lados pelo mar; e no dia de São Micael, o mar desaparece duas vezes, dando ao povo uma passagem livre; isto aconteceu realmente, faz tempo. Em uma ocasião, em que uma grande parte do povo tinha entrado na igreja, aconteceu que junto entrou uma mulher que estava perto do parto. E vejam, a onda da água voltou repentinamente com muita violência, e todos correram assustados para a orla, só a mulher grávida não conseguiu se salvar e foi engolida pelas ondas. Porém, o Arcanjo São Micael conservou ilesa a mulher, de forma que ela deu a luz à sua criança no mar, tomou a nos seus braços e a amamentou; quando o caminho se abriu de novo, na próxima oportunidade, ela saiu feliz com sua criança.
A terceira aparição aconteceu, segundo o que se lê, em Roma, na época do papa Gregório. Como o papa, pela grande peste que é chamada de inguinária, instaurou um grande caminho de pedidos e orava pela saúde do povo, ele viu, então, no castelo que era chamado, para a memória, de Hadriane, um Anjo que limpava uma espada sangrenta e a colocava na bainha. Aí o papa entendeu que Deus tinha ouvido a sua oração e construiu uma igreja para a honra do Anjo, por isso que o castelo se chama até o dia de hoje o castelo do Anjo. Esta aparição é celebrada no oitavo dia de maio, junto com aparição de São Micael, no monte Gargano e a vitória que ele deu aos Sypontanos. -
A quarta aparição é na própria hierarquia dos Anjos. A primeira hierarquia se chama Epifania, aí se fala da aparição mais elevada. A Segunda, chama-se Hiperfania, é a aparição média; a última chama-se Hipofania, é a aparição inferior. Hierarquia, porém, vem de hierar, quer dizer santo; e archos, príncipe; e significa tanto como principado sagrado. Cada uma dessas hierarquias, tem, porém. três ordens: na superior estão os Serafins, Querubins, e Tronos; na segunda ordem, como escreve Dionisios, estão as Dominações, Virtudes e Potestades; na última, como o próprio Dionisios escreve, os Principados, Anjos e Arcanjos. Estas hierarquias são diferentes, na sua dignidade e no seu serviço se assemelham aos servidores dos príncipes da terra. Pois entre os servidores que se encontram sob um rei, uma parte serve de forma imediata a pessoa do rei, como os camareiros, conselheiros, e ajudantes adjuntos: As ordens da primeira hierarquia são iguais à eles. Uma parte dos servidores tem cargos no governo comum do reino e não estão distribuídos para províncias especiais como os superiores do exército e os advogados da corte: Com eles se assemelham as ordens da segunda hierarquia. E alguns estão colocados sobre uma parte do território como os prefeitos e outros funcionários de grau inferior: A estes se assemelham as ordens da terceira hierarquia. As três ordens superiores estão com o próprio Deus, em comunidade com ele. Para isso três coisas são necessárias: O amor supremo, ele está com os Serafins: por isso eles são chamados os ardentes; o conhecimento absoluto, ele está com os Querubins: por isso eles são chamados a plenitude da sabedoria; compreensão e gozo perpétuos, isso está com os Tronos: por isso eles são chamados um sentar, porque o Senhor se senta e descansa neles, enquanto ele os deixa descansar em si próprio. As três ordens da hierarquia do meio dominam sobre os homens como um todo. Seu domínio, porém, consiste em três coisas: Primeiro em mandar e ordenar; isso faz as Dominações, pois eles têm o domínio sobre os inferiores e os dirigem em todas as ações divinas e ordenam tudo para eles: Isso quer dizer Zacarias 2, 4, quando um Anjo fala para outro “Corre, dize àquele rapaz”. O outro é o agir; isso faz as Virtudes ou os fortes, para os quais nada do que é ordenado é impossível de fazer, pois para eles foi dada a capacidade, acima de toda dificuldade, em toda função divina, por isso para elas foi entregue especialmente o fazer milagres, O terceiro é obstruir e proibir, de forma que todo obstáculo e todo contrário sejam expulsos: Isso faz as Potestates, às quais têm o poder de coagir o que se opõe. Disso lemos em Tobias. Onde diz que Rafael desterrou o diabo para o deserto do alto Egito. As três ordenações da última hierarquia estão especialmente determinadas e delimitadas no seu poder: Algumas delas foram colocadas sobre um território, estes são os Principados: Tal como o príncipe dos persas era o que estava à sua cabeça; disso lemos em Daniel, capitulo 10. Alguns estão colocados sobre certa quantidade de pessoas, como uma cidade, esses são os Arcanjos. Porém, alguns estão colocados como guardas de uma única pessoa: estes são os Anjos; por isso que se fala também que eles só comunicam pequenas coisas, pois têm a ver como uma pessoa só. Os Arcanjos, porém, assim se diz, anunciam grandes coisas, pois o bem de um grupo de pessoa é mais importante que o de uma única pessoa. Na determinação das ordenações da primeira hierarquia, São Gregório e São Bernardo concordam totalmente com Dionísio; pois eles também falam que o Serafim significa o gozo de Deus que consiste no amor ardente; que o Querubim representa o conhecimento profundo, e o Trono, o ser em Deus. Porém, na determinação das hierarquias do meio e inferior, eles não parecem ser da mesma opinião sobre duas ordenações, sobre os Principados e sobre as Virtudes. Pois Gregório e Bernardo têm uma outra consideração e pensam que a hierarquia do meio está determinada para o domínio e a inferior para o serviço, O domínio entre os Anjos é tríplice: Alguns dos Anjos dominam sobre bons espíritos, eles são chamados Dominações; alguns dominam sobre homens bons, eles são chamados Principados; alguns dominam sobre os maus espíritos, eles são chamados Potestates. Disso se revela a ordem e o grau da sua dignidade. O serviço é também tríplice: um consiste em agir, um na doutrina das grandes coisas, um na doutrina das pequenas coisas. O primeiro é a função das Virtudes, o segundo dos Arcanjos, o terceiro dos Anjos.
Da quinta aparição nós lemos na História Tripartita. Perto de Constantinopla existe um lugar onde há muito tempo foi adorada a deusa Vesta; porém, ai foi construída uma igreja em honra São Micael, por isso o local se chama também Micaelium. Aí foi atacado, um homem de nome Aquilinus, por uma violenta febre, que também se chama vermelha. Para ele os médicos deram uma poção contra seu calor, a qual ele a cuspiu de novo, vomitando depois tudo o que se lhe dava para comer e beber. Quando a morte estava perto, ele se deixou levar para aquele lugar; pois ele acreditava que ali ele morreria ou ficaria são. Então, apareceu Micael que mandou preparar uma poção com mel, vinho e pimenta; e tudo o que ele comia ele tinha que colocá-lo ai dentro: Assim, ele se tornaria totalmente sadio. Ele fez isso e assim aconteceu; apesar de, segundo a arte médica, não é bom dar poções quentes para doentes de febre.
A festa se chama também o triunfo de São Micael. Pois o triunfo de São Micael e dos outros Anjos é múltiplo. O primeiro é o triunfo que Micael obteve dos Sipontanos. Isso aconteceu da seguinte maneira: algum tempo depois de ter sido encontrado o local de São Micael, marcharam os de Nápoles, que naquela época eram ainda pagãos, com uma esquadra contra as cidades de Sipontus e Beneventus, a qual se encontra a 50 milhas de Sipontus. Então, o bispo de Sipontus aconselhou ao povo a deixar as armas e fazer um jejum de três dias e rogar ao seu protetor São Micael por ajuda. Na terceira noite, São Micael apareceu para o bispo e falou que ele havia escutado as súplicas e lhes prometeu a vitória; ordenou-lhes marchar contra os inimigos na quarta hora do dia. Quando eles chegaram ao campo, o monte Gargano foi sacudido por um terremoto e muitos raios caíram e o pico do monte foi rodeado de trevas; assim morreram 600 dos pagãos pelas flechas ardentes e pela espada dos inimigos. Os sobreviventes, então, reconheceram a força do Arcanjo e deixaram sua fé errada e inclinaram a cabeça para a fé do Cristo.
A outra batalha vencida por São Micael aconteceu quando ele expulsou o dragão, isso é Lúcifer, com toda a sua companhia do céu. Disso, toma-se o que está dito na revelação celeste “houve uma grande batalha no céu, Micael e seus Anjos tiveram de combater o dragão”. (Apoc. 12, 7). Pois, como Lúcifer quis se assemelhar a Deus, veio Micael, o portador do estandarte das hostes celestes, expulsou a Lúcifer com seus companheiros do céu e o desterrou para o ar obscuro, até o dia do juízo final. Pois, eles não podem viver no céu, nem na parte superior do ar, porque aí é claro e ameno, tampouco podem viver na terra conosco, para que não nos possam fazer dano; porém, eles estão no ar, entre o céu e a terra, para que vejam acima de si a glória da qual eles caíram e tenham por isso uma grande aflição; e para que olhem para baixo para a terra e vejam os homens subirem para cima, de onde eles caíram, e sintam uma amarga inveja disso. Porém, por Deus foi também determinado que eles as vezes, vivam entre nós na terra, para a nossa provação. Aí eles, freqüentemente, voam entre nós como mosquitos, tal como foi mostrado para alguns homens santos, pois eles são sem número e preenchem o ar como os mosquitos. Disso, fala Haimo “como falaram os filósofos e acreditam os nossos mestres, o ar está também completamente preenchido de diabos e maus espíritos, tal como um raio de sol cheio está de pequenas partículas” e se deles existem tantos, de acordo com a opinião de Origines o seu exército é reduzido cada vez que vencemos a um deles: Então, que um que foi vencido por um homem santo nunca mais pode tentar o pecado pelo qual foi vencido.
A terceira vitória é aquela que os Anjos vencem todos os dias contra o diabo quando eles lutam por nós e nos liberam da sua tentação. De três formas, eles nos liberam da sua tentação. A primeira é que eles amarram o poder do diabo; disso, nós lemos na revelação dos céus, no capítulo 20, do Anjo que amarrou o diabo e o jogou no abismo; e em Tobias no capítulo 8, do diabo que foi amarrado ao deserto superior. Porém, sua prisão não era outra coisa senão o poder que lhe havia sido tirado. O outro, é que eles acalmam os nossos apetites; isso está escrito no Gênesis 32, onde diz que o Anjo mexeu num tendão da coxa de Jacó e rapidamente ele secou. O terceiro, é que eles gravam nos nossos sentidos a memória do sofrimento do nosso Senhor, isso é o que diz na revelação celeste, no capítulo 7 onde diz “não danes a terra, nem o mar, nem as árvores até que marquemos as frontes dos servos do nosso Senhor. Isso está em Ezequiel 9, 4 “marca com o sinal do TAO a fronte dos homens que choram e se lamentam por tantas abominações que se praticam em Jerusalém”. Pois o sinal do TAO é uma letra que tem a forma de uma cruz; e aqueles que estão marcados por ela não temem o golpe do Anjo. Por isso diz aí mesmo “naqueles em que vós vejais o sinal do TAO, a esses não matareis”. (Ezequiel 9, 6).
A Quarta vitória é a que o Arcanjo Micael ganhará sobre o Anticristo, matando-o. Pois aí será Micael o grande principe, como está escrito em Daniel, no capítulo 12: Poderoso como um ajudante e protetor dos escolhidos que estão contra o Anticristo. Então, o Anticristo se apresentará morto, como diz o Apocalipse 13 sobre a palavra “eu vi uma das suas cabeças como se estivesse morta”; e se manterá três dias escondido e aparecerá no terceiro dia falando que ressuscitou; então, os seus demônios o levarão com suas artes de magia a subir nos ares e todos se maravilharão e o adorarão; finalmente, ele subirá no Monte das Oliveiras como fala a glosa sobre o verbo da segunda carta aos tessalônicos 2, 8 “àqueles que o Senhor Jesus matará”, assim estará ele na sua tenda, no local contra o qual o Senhor subiu: Aí virá Micael e o matará. Desta batalha e deste triunfo deve se entender, segundo Gregório, o que está escrito na revelação celeste, no capítulo 12 “houve uma grande batalha no céu, Micael e seus Anjos lutaram com o dragão e seus anjos”. Pois está palavra é entendida como a tríplice luta de São Micael: Que ele, primeiro, lutou com Lúcifer, expulsando-o do céu; que ele, depois, luta contra os diabos que nos tentam: e que na terceira vez, no final do mundo, ele luta com o Anticristo, como está dito aqui.
Em terceiro lugar esta festa é chamada a consagração da igreja de São Micael porque nesse dia São Micael anunciou que aquele local, no Monte Gargano. estã consagrado a ele. Pois apesar do povo de Sipontus ter retornado do grande massacre e ter triunfado sobre os seus inimigos, eles ainda duvidavam se deviam ir para esse local ou se deviam consagrá-los. Por isso, o bispo solicitou conselho ao papa Pelagios. o qual respondeu: se uma pessoa deve consagrar aquela igreja deve fazê-lo no dia em que lhe foi concedida a vitoria: porém. Se São Micael prefere outra coisa, deve se solicitar sele que ele expresse a sua vontade então o bispo e todo o povo ficaram três dia em jejum, em oração, então, apareceu São Micael a esse bispo, e falou não é necessário que vocês consagrem a igreja que construíram, pois eu mesmo consagrei aquela que eu fundei’. E lhe ordenou que viesse, no dia seguinte, com o povo e entrasse na caverna e orasse para ele, e que devia de assumí-lo totalmente como seu protetor. E como sinal da consagração eles deviam vir desde o leste por um caminho secundário, e assim eles encontrariam as pegadas de uma pessoa impressas no mármore. De manhã, o bispo e todo o povo chegaram ao local e entraram na caverna, e encontraram uma grande cripta com três altares, dois dos quais estavam dirigidos para o meio dia e um para o amanhecer, o qual era especialmente digno e estava coberto por um manto vermelho. Eles celebraram ai mesmo a missa, e cada um recebeu a sagrada santa ceia; depois, regressaram com grandes alegrias. O bispo, porém, instalou sacerdotes e clérigos para que eles executassem em todo o tempo o seu sagrado serviço. Na mesma caverna flui uma água clara, que é muito doce; dela bebe o povo depois da comunhão, e com isso algumas enfermidades são curadas. Quando o papa soube de tudo isso, ele ordenou que esse dia fosse celebrado em honra de São Micael e de todos os espíritos santos.
Em quarto lugar, a festa chama-se também memória de São Micael porque nesse dia nós nos lembramos de todos os Anjos e os honramos a todos em conjunto. Nós devemos, porém, oferecer-lhes louvor e honra por muitas coisas. Pois eles são nossos protetores, nossos servidores nossos irmãos e nossos compatriotas; eles levam as nossas almas para os céus e a nossa oração perante a face de Deus. Eles são os cavaleiros mais nobres do rei supremo e os consoladores dos aflitos. Então, nós devemos honrá-los em primeiro lugar porque eles são nossos protetores. Pois a cada pessoa são dados dois Anjos, um mau, que o tenta, e um bom que o cuida. O bom Anjo é colocado ao lado do homem no seu nascimento, já no corpo da sua mãe, e depois de nascer, e fica ao seu lado durante os anos todos. Nestas três épocas a proteção do Anjo é absolutamente necessária para o homem: ainda pequeno, no seio materno ele pode morrer e ser condenado; nascido, porém, ainda não crescido ele pode ser impedido do batismo; porém ele cresceu até a idade madura, ele pode enredar-se em muitos pecados. Pois o diabo tenta a pessoa adulta encantando seu entendimento com truques, estimulando sua vontade com seduções e reprimindo sua virtude com poder. Por isso foi necessário dar-lhe um anjo como proteção, que o educa e rejeita os truques do diabo; o exorta para o bem contra suas seduções; e o ajuda contra o poder e a repressão. Esta ação da proteção do Anjo no homem deve ser entendida de quatro formas. A primeira é que sua alma cresce na graça para o bem; o Anjo faz isso de três formas: ele mata tudo o que quer impedir o bem; isso está caracterizado no Êxodo 12, quando o Anjo mata os primogênitos do Egito. Ele nos tira toda preguiça; sobre isso está escrito em Zacarias 4, 1, onde diz “o Anjo do Senhor me acordou como se acorda um homem do sono”. Ele o guia pelo caminho da expiação e do retorno; disso, lemos em Tobias 5, que o Anjo o levou e o trouxe de volta. A segunda coisa, é que o homem não caia em culpa; isso o Anjo o impede de três formas: ele evita o mau futuro, isso está caracterizado nos Números 22, no Balaam, que viajou para envergonhar Israel e foi impedido pelo Anjo. Ele castiga um crime passado para que o homem se veja livre dele; isso está caracterizado nos Juízes 2, quando o Anjo castiga os filhos de Israel por sua infração; ai eles levantaram as suas vozes e choravam. Ele rejeita violentamente õ pecado presente: isso se mostra na violenta retirada de Lot e sua mulher de Sodoma, isso é: do costume dos pecados. A terceira coisa, é que o homem novamente se levante, se ele caiu. O Anjo faz isso de três formas: move-o para o arrependimento; sobre isso nós lemos em Tobias 11, quando Tobias, pelo conselho do Anjo, esfrega os olhos do pai, esses são os olhos do espírito, com bílis, isso significa o arrependimento. Ele purifica os lábios do homem para a confissão, disso lemos em Isaías 6, quando o Anjo purifica os lábios de Isaias. Ele o estimula à penitência; por isso diz em Lucas 15, que maior alegria existe no céu sobre um pecador que faz penitência do que sobre cem justos. O quarto, é que o homem não caia mais em pecados tão grandes e numerosos como o diabo o tenta; o Anjo faz isso de três formas ele amansa o poder do diabo; ele enfraquece o apetite mau; ele grava na nossa reflexão a memória do sofrimento do Senhor, do qual foi falado acima.
Também nós devemos honrá-los porque eles são nossos servidores. Pois todos eles são espíritos servidores, tal como está escrito em Hebreus, capítulo 1 “todos eles são enviados para nós, os mais altos para os do meio, os do meio para os de baixo, os de baixo para nós. Esta missão acontece pela bondade de Deus; nós a reconhecemos porque ele, pela saúde das nossas almas nos envia os espíritos mais nobres que estão unidos a ele com o mais íntimo amor, para nossa salvação. Ela também acontece através do amor dos Anjos; pois é um amor ardente quando se procura o amor do outro. Disso fala também Isaías 6, 8 “vê, aqui estou Senhor, envia-me”. E os Anjos podem ajudar nisso porque vêm que nós precisamos da sua ajuda e que os maus espíritos lutam conosco, então se cumpre a lei do amor dos Anjos, quando eles são enviados para nós. Acontece também pela debilidade humana. Pois eles são enviados primeiro para inflamar nossos apetites para o amor, do qual lemos numa imagem que eles oram enviados num carro de fogo; também para iluminar nosso espírito para o conhecimento, isso está caracterizado na revelação oculta no capítulo 10, no Anjo que tem um livro aberto na sua mão; em terceiro lugar, para fortalecer o perfeito em nós, até o fim, isso está escrito nos Reis 3, 19, onde o Anjo traz para Elias um pão assado nas cinzas e um cântaro com água: e ele comeu e andou, com a força dessa comida, até a montanha de Deus Oreb.
Em terceiro lugar, devemos honrá-los porque eles são nossos irmãos e compatriotas. Pois todos os escolhidos são recebidos pelo grupo dos Anjos, alguns entre os superiores, alguns entre os inferiores, alguns entre os do meio, segundo a diferença de seus méritos, excetuando-se unicamente a Virgem Sagrada, que está acima de todos os coros angélicos. Isto é também o que opina São Gregório no seu sermão, e diz “existem alguns que só receberam poucas graças, mas eles as comunicaram para os seus compatriotas; e os mesmos são colocados no grupo dos Anjos. Alguns compreendem os mais profundos mistérios das coisas celestes e de suas mensagens; eles sobem para os Arcanjos. Alguns fazem sinais e agem com grande força; eles estão com as Virtudes. Alguns expulsam maus espíritos com a força da oração e do poder que lhes foi dada; eles estão com as Potestades. Alguns superam, com as forças que lhes foram dadas, os méritos dos santos, e mandam sobre os irmãos escolhidos; eles são congregados aos Principados. Alguns conseguiram amansar todos seus vícios, e pela sua pureza são chamados de deuses entre os homens; disso fala o Senhor para Moisés “eu coloquei o faraó como um Deus”; eles moram com as Dominações. Alguns estão em uma situação em que o próprio Senhor se senta sobre eles como um trono e dirige os atos dos outros: através dele é dirigida a igreja sagrada, e as obras fracas de todos os escolhidos são julgadas por eles; eles vão até os Tronos. Alguns estão mais preenchidos que todos os outros pelo amor a Deus e ao seu próximo; pelos seus méritos eles recebem um lugar entre os Querubins: pois Querubim significa plenitude da sabedoria, e o cumprimento da lei é, segundo Paulo, o amor. Alguns, que estão inflamados de amor pela contemplação do sobrenatural, não anseiam outra coisa além de contemplar o seu criador: eles não anseiam mais nada deste mundo e vivem do amor pela eternidade, eles afastam o terrestre de si seus sentidos vão para além do temporal, eles amam, ardem e pairam no seu fervor: seu amor é um foco e a sua fala é urna brasa, e onde eles chegam com a sua palavra inflamam tudo no foto dc amor de Deus, a que outro laca: elos seriam chamados senão entre os Serafins?’ isso escreve Gregório.
Em quarto lugar devemos venerar os Anjos porque eles guiam as nossas almas para o céu. Isto, eles o fazem de três formas. Primeiro, eles preparam o caminho: disso fala Malaquias “Olha. eu envio a ti o meu Anjo para que ele prepare o caminho perante a tua face”. Depois eles dirigem as almas para o céu peio caminho preparado: disso faia Exudus-23, 20 “Olha, eu envio o meu Anjo que deve te proteger no caminho e te levar para a terra que eu prometi para os teus pais”. Em terceiro lugar, eles colocam as almas no céu; disso fala Lucas no capítulo 16 “aconteceu que o pobre morreu e a sua alma foi levada pelos Anjos para o seio de Abraão”.
Em quinto lugar, devemos honrá-los porque eles levam as nossas orações para Deus. Pois primeiro, eles trazem as nossas orações ante o Senhor. Disso, fala Tobias 12, 12 “se tu oraste com lágrimas e enterraste os mortos, eu levei tua oração ante o Senhor. Além disso, eles intercedem por nós: Jó 33, 23 “encontre um Anjo favorável, um só intercessor entre mil, que dê testemunho da retidão do homem, que tenha compaixão dele”. O mesmo em Zacarias 1, 12 “e o Anjo respondeu ao Senhor e falou “Senhor Todo poderoso, quanto tempo ainda não te apiedarás de Jerusalém e das cidades de Judá, com as quais tu estás irado há setenta anos”. No terceiro lugar, eles nos anunciam o julgamento de Deus. Disso, escreve Daniel 9, 23, que Gabriel voou para ele e falou “quando começavas a rezar, foi proclamada uma palavra”, sobre isso, disse a sentença “esse é um julgamento de Deus”, e disse ainda “eu vim aqui para comunicá-la, porque tu és um predileto”. Destes três fala São Bernardo sobre o Cântico Supremo “o Anjo anda entre o amado e a amada, traz votos e doa presentes, acorda-os perante ele e os faz dignos da graça”.
Em sexto lugar, devemos honrá-los porque eles são os nobres cavaleiros do rei eterno; disso fala Jó 25, 3 “Pode ser contado o número de suas tropas?” E quando nós vemos que dos cavaleiros de um rei terrestre alguns moram o tempo todo na sua corte, e são seus companheiros e lhe cantam louvores e consolos; alguns protegem suas cidades e castelos; alguns lutam contra seus inimigos: então também vivem dos cavaleiros de Cristo alguns na sua corte, esse é no Empireu, eles estão sempre em torno dele e cantam em sua honra, alegria e louvor, e falam “Santo, santo, santo é o Senhor” e “Benção, glória e sabedoria” (Apocalipse 7, 12); alguns viviam cidades, terras, aldeias e castelos: esses eram os que nos foram dados para a nossa proteção, eles vigiam as virgens, e os castos, e os desposados, e os castelos dos monges, isso disse em Isaías 62, 6 “sobre teus muros, Jerusalém, coloquei meus guardas”; alguns lutam contra os inimigos de Deus, o diabo; disso fala o Apocalipse 12, 7 “houve uma grande batalha no céu”, isso é segundo uma interpretação, na igreja lutadora “Micael e os outros Anjos lutaram contra o dragão”.
Em sétimo e último lugar, devemos honrá-los porque eles consolam os aflitos: Zacarias 1, 13 “o Anjo que falava comigo com palavras boas e consoladoras”; também Tobias 5, 13 “Sê bem vindo”. Isso eles o fazem de três formas. Primeiro, eles dão força e resistência; disso está escrito em Daniel 10, que o Anjo toca a Daniel quando ele cai e fala “Não temas, a paz seja contigo! Recobra o ânimo e a coragem!” (Dan. 10, 19). Também na medida em que eles protegem da impaciência: Salmos 90, 11 “ele ordenará aos seus Anjos que te protejam em teus caminhos. Eles te levarão pelas mãos para que teus pés não tropecem nas pedras”. E em terceiro lugar, eles sentem a aflição e a diminuem; isso está descrito em Daniel 3, 50, quando “o Anjo do Senhor tinha descido na fornalha para junto dos três jovens; expeliu da fornalha as labaredas de fogo, e deixou o interior da fornalha como se ele fosse um vento de orvalho refrescante”.
(nota do tradutor: lembramos ao leitor deste texto que foi mantida, assim como no original em alemão, a linguagem popular da época)
(Texto extraído de: “Die Legenda Aurea”. Versão alemã de Richard Benz, Verlag Lambert-Schneider, 1975 - págs. 743 a 756.)
A Lenda Áurea foi o livro mais popular e mais difundido da Idade Média , muito mais difundido que a Bíblia. Surgiu entre 1263 e 1273. Seu autor foi o dominicano Jacobus de Voragine (arcebispo de Gênova).