Textos Diversos

Como educar-nos para a Fé no mundo de hoje

Imprimir

Ana Paula Cury


Vivemos uma época em que o encontro com o Mal é uma experiência cada vez mais freqüente, seja em acontecimentos noticiados pela mídia, seja no mais recôndito âmbito da vida particular.
“Do ponto de vista da Ciência Espiritual, segundo Steiner, o verdadeiro problema na luta da humanidade com o mal, independentemente da forma e do lugar em que ocorra, consiste no seguinte: enquanto os homens não se voltarem para o mundo espiritual, em plena consciência e a partir da liberdade individual, e não compreenderem que apenas com os meios oferecidos pela atual civilização materialista eles não conseguirão dominar os problemas vindouros, necessitando para isso da ajuda e da participação de seres espirituais, nenhuma crise no mundo poderá realmente ser vencida.
Isto significa que sem uma aproximação da realidade espiritual, todos os esforços na luta com o mal levarão, no melhor dos casos, a que este seja impelido de um lugar a outro, como acontece nas doenças crônicas, para depois voltar com uma potência destruidora muitíssimo maior.
É preciso, antes de mais nada, que cada um se esforce em obter um conhecimento das bases espirituais do Mal. Isto hoje é possível com a ajuda da Ciência Espiritual. Pois para dominar o mal, postar-se corretamente frente a ele, o primeiro passo é reconhecê-lo com base numa ciência do espírito. Tal reconhecimento, ademais, não é importante apenas para os homens, mas também para as entidades do mundo espiritual (as hierarquias), pois estas não conseguem entender de modo imediato a atuação do mal no mundo material, necessitando para isso de uma representação imagética da mesma na consciência espiritualizada dos seres humanos. Conseguindo perceber as forças do mal dessa maneira, elas poderão auxiliar o ser humano em sua luta contra o mal.” (S. Prokofieff)
Nos jardins Waldorf, quando celebramos a festa da Lanterna, que justamente fala de um despertar e cuidar da Luz interior para que ela não se apague diante dos ventos e tempestades da vida, costumamos cantar com as crianças:  “No céu brilham estrelas, na Terra brilhamos nós”.
Assim como quando estamos perdidos, no escuro, podemos olhar para o céu e de acordo com as estrelas nos situarmos, nos orientarmos, também os seres espirituais superiores podem se orientar pela luz que emana de pensamentos humanos. É preciso, portanto, que elevemos a eles pensamentos que eles reconheçam de tal forma que sejamos então imbuídos de suas forças.
Em sua palestra  “Como superar a Necessidade Anímica de Nossa Época” Steiner diz o seguinte sobre isso: “Há um laço real entre o mundo do espírito e o mundo humano. E este laço real reflete-se no fato de os seres superiores, moradores do mundo espiritual extraterrestre, poderem olhar com prazer e satisfação para os pensamentos que nós concebemos a respeito do seu mundo. Os seres espirituais só podem nos ajudar se formarmos pensamentos sobre eles, mesmo se ainda não podemos olhar para os mundos espirituais como clarividentes; podem ajudar-nos desde que tenhamos deles algum conhecimento. Como compensação pelos nossos estudos da Ciência Espiritual, recebemos uma ajuda do mundo do Espírito. O que nos ajuda não são as coisas que aprendemos, os conhecimentos que adquirimos, mas os próprios seres das hierarquias superiores – desde que tenhamos conhecimento de sua existência.”
Assim Steiner nos faz ver por meio de sua Ciência Espiritual, que por trás de tudo o que acontece de visível existem seres, ou forças e processos espirituais. Ele nos fala não somente de seres espirituais guias do desenvolvimento humano, mas também daqueles que se opõem a ele, fala-nos de diferentes formas de manifestação de potências adversárias do desenvolvimento humano.
Ele nos fala de Lúcifer, por um lado, atuando essencialmente na inflação do Ego – no egoísmo. Fala também de Ahriman que intenta extirpar o espiritual da consciência humana, velando o espiritual, ocultando-o, buscando afundar o homem no materialismo.
Em contrapartida, ele indica aquilo que nos pode proteger dos ataques destes poderes: O juízo sadio e a purificação do caráter. Como meios para conquistar estes atributos, deu-nos os conteúdos da Ciência Espiritual Antroposófica, cujo estudo, entre outras coisas, nos educa o pensar e o discernimento, e exercícios para a purificação e fortalecimento interior. Em verdade, a Ciência Espiritual Antroposófica nos prepara para viver com o Cristo em sua nova forma de manifestação. Ela é qual a linguagem através da qual nós podemos encontrá-lo. E é a relação com o Cristo o que nos pode verdadeiramente auxiliar a encontrar o caminho do meio. O ponto de equilíbrio entre os extremos unilaterais de Lúcifer e Ahriman.
Em nossa época, podemos falar de uma nítida arimanização da cultura, de uma preponderante orientação materialista, e isto tem como conseqüência, entre outras coisas, a intensificação do Medo. Como podemos explicar isto? Remontemos à origem do medo.
Houve um tempo em que o homem estava involuntariamente entregue somente às influências dos bons guias de sua evolução. Mas então ocorre uma intervenção dos seres Luciféricos, surge um impulso para a separação, a emancipação daqueles poderes espirituais superiores, e com isso, originaram-se muitos sentimentos e sensações até então não conhecidos. Este fato é aludido em linguagem alegórica no gênesis como a “queda do Paraíso”. “Até ocorrer essa influência, a alma humana em sua atuação e trabalho formativo, atuava de acordo com as intenções das entidades espirituais superiores. O plano de tudo o que devia ser realizado estava determinado de antemão, e na medida de seu desenvolvimento a consciência humana podia prever a evolução futura dos acontecimentos segundo esse plano determinado. Essa consciência profética se perdeu quando diante da manifestação das entidades espirituais superiores se estendeu o véu das percepções terrestres, ocultando-se nelas as verdadeiras forças dos seres das hierarquias. De então em diante o futuro se tornou incerto, e com isso se implantou na alma a possibilidade do sentimento de temor. Do ponto de vista espiritual, o surgimento do temor significa que dentro das forças terrestres, a cuja influência o homem fora submetido pelas potências luciféricas, estavam ativos outros poderes que, no decorrer da evolução haviam assumido uma irregularidade muito antes dos luciféricos. Com as forças terrestres, o homem acolheu em seu ser as influências dessas potências. A sentimentos que sem elas teriam atuado de modo bem diverso, elas deram o atributo do temor. Pode-se chamar estas entidades de arimânicas.”( Ciência Oculta – Rudolf Steiner)
Se de um lado ocorre a intensificação da atuação arimânica e com ela uma possibilidade maior do medo, de outro lado, quando não opomos a isto algo que contrabalance seus efeitos ficamos mais à mercê desta atmosfera, imersos num mar de pensamentos e visões sombrios, indutores do medo.. Em um outro ciclo de palestras de Steiner intitulado “As Metamorfoses da Alma”, ele abordou uma questão relacionada a uma condição que nos torna excessivamente vulneráveis às influências, incluindo as das potências adversárias no mundo.
Ali ele diz:
(...) No sentido de um verdadeiro e profundo ensinamento sobre as almas humanas poderíamos designar como Positiva aquela pessoa que, em face de todas as impressões que vêm ao seu encontro desde o mundo exterior, é capaz de manter a firmeza e segurança de seu ser interior, ao menos até certo ponto. Conseqüentemente ela manterá certas idéias e conceitos, além de inclinações e aversões que as impressões exteriores não poderão perturbar. Assim, suas ações seguirão certos impulsos que não serão afetados por quaisquer impressões transitórias que possam chegar a ela na vida cotidiana.
Um homem negativo, por outro lado, pode ser descrito como alguém que prontamente se submete às impressões mutáveis e é fortemente influenciável pelas idéias que vêm a ele deste ou daquele indivíduo ou grupo. Portanto, ele é facilmente impelido a mudar o que pensava ou sentia para assumir um pensamento diferente em sua alma. Em suas ações ele é atraído por todo tipo de influência derivada de outras pessoas, afastando-se de seus próprios impulsos.

(...) Jamais acontece de um homem ser somente ou sempre positivo e outro sempre negativo. Todos nós passamos através de condições positivas e negativas ao longo das diferentes fases da vida e estágios de desenvolvimento.

(...) Se nós nos elevássemos da vida comum ao ponto em que pudéssemos ver quais os fatos e seres espirituais que estão atuando em nosso entorno, diríamos que um homem com qualidades anímicas do tipo “negativo” está particularmente aberto à influência daquelas impressões intangíveis, indefiníveis, dificilmente evidentes na vida exterior. Por exemplo, os fatos mostram que um homem, quando só, é bem diferente de si mesmo quando em meio a uma assembléia, especialmente se a assembléia for ativa. Quando está sozinho, ele segue seus próprios impulsos; mesmo um ego frágil terá em si mesmo a fonte de suas ações. Mas em uma grande assembléia há uma espécie de alma da massa  (mass-soul) na qual os vários desejos, impulsos e julgamentos dos presentes convergem. Um homem positivo não se renderá facilmente a esta entidade coletiva, mas um homem negativo sempre será influenciado por ela.
Nós podemos freqüentemente notar que os homens são mais sábios sós do que acompanhados, pois então eles quase sempre estão sujeitos à atmosfera anímica prevalente. Desse modo, um homem pode ir a um encontro sem possuir ainda idéias e sentimentos definidos; mas então, escuta o palestrante que levanta com muito entusiasmo algum ponto que antes não lhe provocara qualquer efeito especial. Ele pode ser afetado não tanto pela fala do conferencista, mas pela aclamação da assembléia. Isto o cativa e ele volta para casa convencido.
A sugestão de massa deste tipo desempenha um enorme papel na vida. Ela ilustra o perigo ao qual está exposta uma alma em estado negativo, e em particular a ameaça do sectarismo, pois enquanto nós podemos falhar em convencer um indivíduo de alguma coisa, a tarefa torna-se relativamente fácil se pudermos colocá-lo sob a influência de um secto ( uma seita) ou grupo, pois aí a sugestão de massa estará atuante, espalhando-se de alma para alma. Há um grande perigo aqui para as pessoas do tipo negativo.”
De um lado Steiner aponta a situação, faz o diagnóstico, de outro, indica o remédio:

“(...) Existe uma coisa que sempre confere um caráter positivo à alma. Para o homem moderno, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, trata-se do correto juízo, da ponderação racional, esclarecendo para si mesmo qualquer situação ou relacionamento que possa surgir na vida. O oposto disso é a perda do juízo sadio, o discernimento, de sorte que as impressões sejam admitidas na alma de tal maneira que as qualidades positivas não oferecem qualquer proteção contra elas. Nós podemos mesmo observar que quando certas atividades humanas deslizam ou deslocam-se para o âmbito inconsciente, elas freqüentemente têm um efeito mais poderoso sobre as outras pessoas do que quando emergem do exercício do julgamento racional.
É um infortúnio, especialmente no movimento científico-espiritual, que quando fatos acerca do mundo espiritual são dados em uma forma estritamente lógica, uma forma reconhecida em todas as outras esferas da vida, que as pessoas se inclinem a evadir-se delas; elas acham incompatível a apresentação de tais conteúdos em uma seqüência racional de causa e efeito. Mas se estas comunicações são transmitidas a elas de tal sorte que seu juízo não seja solicitado, elas estão muito mais prontas a corresponder. Existem mesmo pessoas que desconfiam fortemente de uma informação sobre o mundo espiritual se ela for dada em termos racionais, mas são extremamente crédulas se as escutam de médiuns que pareçam inspirados por algum poder desconhecido. Estes médiuns, que não sabem o que falam e que falam mais do que sabem, atraem muito mais crentes do que pessoas que saibam exatamente do que eles estão falando.
(...) Quando qualquer coisa que venha do mundo espiritual é lançada abaixo para uma região da qual a consciência é excluída, há o perigo de que atue sobre as características negativas da alma, pois estas características sempre vêm à cena quando somos abordados por uma influência das profundezas inconscientes. A observação meticulosa mostra como uma pessoa relativamente estúpida, graças às suas qualidades positivas pode ter um forte efeito sobre uma pessoa mais inteligente se a última for facilmente impressionável por qualquer coisa que emerja da obscuridade subconsciente. Dessa forma podemos entender como pessoas possuidoras de mentes refinadas são às vezes vítimas de outras de caráter robusto cujas afirmações derivam somente de suas próprias inclinações ou impulsos.
(...) Ora, na ciência espiritual, ou Antroposofia, temos algo que requer incondicionalmente uma resposta positiva. Se a alguém é dito que com a ajuda de aparelhos modernos, fotografias ou projetores de slides ele pode ver um animal ou algum fenômeno natural trazido diante de seus olhos sobre uma tela, ele o verá passivamente, em um modo mental negativo; ele não necessitará nenhuma qualidade positiva nem precisará pensar. Este é apenas um exemplo de quão amplo é o apelo destas atitudes negativas, hoje em dia. Já a Antroposofia não é tão simples. Fotografias poderiam no máximo oferecer uma sugestão simbólica de algumas de suas idéias. A única forma de nos aproximarmos do mundo espiritual é através da vida da alma humana. Qualquer um que aspire penetrar de modo frutífero a ciência espiritual deve perceber que seus elementos mais importantes não estarão sujeitos a demonstração. Ele será advertido de que deverá trabalhar sobre e com a alma, de modo a suscitar suas qualidades mais positivas. De fato, a ciência espiritual é no sentido mais elevado, competente para cultivar estas qualidades na alma humana. Nisto também reside o efeito salutar de sua cosmovisão, que não pretende coisa alguma senão o despertar das forças que dormitam na alma.  Ao apelar à atividade inerente a cada alma, a Antroposofia traz à tona suas forças ocultas, a fim de que possam permear toda a vitalidade e energia do corpo; tendo, portanto um efeito salutogenético, no mais pleno sentido, sobre o ser humano inteiro. E porque a Antroposofia apela somente à razão, que não pode ser evocada pela sugestão de massa, mas apenas mediante entendimento individual, e porque ela renuncia a tudo quanto a sugestão de massa pode produzir, ela conta com as mais positivas qualidades da alma humana.”
Há uma pequena parábola que ilustra perfeitamente as transformações anímicas que uma educação do pensamento e o trabalho interior feitos com paciência e perseverança podem gerar.

 

“A Parábola do Cesto de Junco”

“Certo dia, um discípulo chegou para seu mestre e perguntou:
_ Mestre, porque devemos ler e decorar a Palavra de Deus se nós não conseguimos memorizar tudo e com o tempo acabamos esquecendo? Somos obrigados a constantemente decorar de novo o que já esquecemos.
O mestre não respondeu imediatamente ao seu discípulo. Ficou olhando para o horizonte por alguns minutos e depois ordenou ao discípulo:
_ Pegue aquele cesto de junco, desça até o riacho, encha o cesto de água e traga-o aqui.
O discípulo olhou para o cesto sujo e achou muito estranha a ordem do mestre, mas mesmo assim, obedeceu. Pegou o cesto, desceu os cem degraus da escadaria do mosteiro até o riacho, encheu o cesto de água e começou a subir.
Como o cesto era todo cheio de furos a água foi escorrendo e quando chegou até o mestre já não restava mais nada. O mestre perguntou-lhe:
_ Então, meu filho, o que você aprendeu?
O discípulo olhou para o cesto vazio e disse jocosamente:
_ Aprendi que cesto de junco não segura água.
O mestre ordenou-lhe que repetisse o processo. Quando o discípulo voltou com o cesto vazio novamente, o mestre perguntou-lhe outra vez:
_ E agora, o que mais você aprendeu?
O discípulo novamente respondeu com sarcasmo:
_ Que cesto furado não serve para carregar água.
O mestre então continuou ordenando que o discípulo repetisse a tarefa.
Depois da décima vez, o discípulo estava desesperadamente exausto de tanto subir e descer as escadas. Porém, quando o mestre lhe perguntou de novo:
_ Então, filho, o que você aprendeu?
O discípulo olhando para dentro do cesto percebeu admirado: “o cesto está limpo!” . Apesar de não segurar a água, a repetição constante de encher o cesto acabou por lavá-lo e deixá-lo limpo. E o mestre, por fim concluiu:
_ Não importa que você não consiga reter todas as passagens da palavra sagrada que você lê. O que importa, na verdade, é que no processo, a sua mente e sua vida ficam limpas diante de Deus.”

 

Steiner como um iluminado podia antever muito do que estava por vir no futuro da humanidade. E não foi por acaso que pronunciou versos tão acertadamente proféticos como os que costumamos lembrar nesta época do ano, dedicada à celebração de Michael.


“Temos de erradicar da alma, todo medo e terror daquilo que o futuro possa trazer ao homem.Temos de adquirir serenidade em todos os sentimentos e sensações a respeito do futuro.Temos de olhar para frente com absoluta equanimidade para com tudo que possa vir. E temos de pensar somente que tudo o que vier nos será dado por uma direção mundial plena de sabedoria.Isto é parte do que temos de aprender nesta era; a saber viver, sem qualquer segurança na existência material,mas viver com plena confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual.Em verdade, nada terá valor se a coragem nos faltar.Disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior todas as manhãs e todas as noites.”


Há três pontos fundamentais nestes versos que gostaria de destacar:
Primeiro: tudo o que vier nos será dado por uma direção mundial plena de sabedoria. Em tudo o que acontece há um propósito sábio. Há um princípio ordenador da vida e do mundo. Segundo: precisamos aprender a viver sem qualquer segurança na existência material, mas podendo contar sempre com a ajuda do mundo espiritual. E terceiro: disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior todos os dias. 


Ou seja, ainda que não compreendamos ou não possamos elaborar tudo quanto acontece em nossos dias, se desenvolvermos uma relação de fidelidade e confiança com o mundo espiritual teremos a tranqüilidade para aceitar aquilo que vem e a força para fazer disso algo de bom.
Há um velho ditado sufi que diz “confia, e amarra teu cavalo”. Quer dizer, confia, mas não resignadamente, faz também a tua parte. Não se trata de uma confiança cega nem irresponsável. E nossa parte tem a ver com este despertar interior que precisamos buscar e renovar todos os dias a partir de nossa livre vontade. O Salmo 90, chamado de salmo da confiança, também diz em seus lindos versos: “Tua fidelidade é teu escudo protetor”. Se examinarmos a origem da palavra fé, veremos que vem do latim Fidelis.
Steiner nos diz que o corpo Astral, ou nosso corpo de sentimentos, desejos, emoções é o corpo da Fé. A força que dele emana quando bem estruturado é Fé. Ora, estamos mergulhados hoje numa astralidade, numa atmosfera de medo. E ele também acrescenta, “a missão do medo é nos educar para a fé”. Ao realizarmos o esforço requerido por nossa época, de despertar para uma concepção espiritualizada da vida, purificamos nosso corpo de sentimentos e nos fortificamos na fé.
Para a formação desta atmosfera de medo e pânico em que estamos inseridos, mergulhados, colabora principalmente a mídia, formando uma “opinião pública”, mas também atitudes individuais que se vão somando numa corrente e espalhando temor através de notícias desencontradas, discursos muitas vezes infundados, distorcidos e freqüentemente repassados adiante, seja por via oral ou pela internet.  
Podemos fazer nossa parte, por exemplo, exercitando o discernimento, verificando a veracidade dos fatos propagados, calando o que não ajuda ou não é relevante e agindo coerentemente com a fé que queremos ter. Há uma outra história que nos lembra disso. Trata-se da história das peneiras da sabedoria.

 

A Parábola das Três Peneiras

  Há muitos séculos atrás, num mosteiro budista, após a cerimônia noturna, o Monge Abade se retira para o seu merecido descanso e enquanto tomava calmamente o seu chá, à luz de apenas uma lamparina de óleo. Fazendo entreabrir a porta de correr, feita apenas de madeira e papel de arroz, entra um dos monges instrutores do templo, reverenciando profundamente o mestre.
 Indagado pelo Abade sobre o motivo de sua visita a essas altas horas da noite, o monge lhe diz que o motivo de sua visita é contar ao mestre sobre alguns comentários que estão correndo no templo sobre um outro mestre instrutor.
 O Venerável Abade, então, lhe diz em sua profunda sabedoria:
 - Calma! Antes de me contares algo que ouviste sobre outra pessoa, gostaria de lhe perguntar: Já fizeste passar essa informação pelas Três Peneiras da Sabedoria?
 - Peneiras da Sabedoria, Venerável Mestre? Espanta-se o monge.
 - Sim, as Três Peneiras da Sabedoria. Tudo o que ouvires falar sobre algo ou alguém, deves passar pelas Três Peneiras da Sabedoria, antes de ser retido, acreditado e repassado. Ouça com atenção e me responda: Tens absoluta certeza de que o que te contaram é realmente verdade?
  - Não, não tenho certeza Venerável Mestre. Apenas sei o que me contaram. – Disse meio sem jeito o monge.
  - Então, se não tens certeza, a informação já vazou pelos furos da primeira peneira que é a da profunda investigação da Verdade. Agora ela repousa sobre a segunda peneira, e por isso eu lhe pergunto: - O que tens a me dizer é algo que gostaria que dissessem sobre ti?
  - De maneira alguma, Mestre! É claro que não! diz o monge.
 - Então tua estória acaba de passar pelos furos da segunda peneira que é a da compaixão, pois nunca deverias dizer ou fazer a alguém aquilo que não quisesses que fizessem ou dissessem de ti. Agora, tua estória repousa sobre a terceira e última peneira, e por isso lhe faço a última pergunta: - Achas que me contando essa estória sobre o seu irmão e companheiro de mosteiro, ela será útil a ele de alguma maneira?
  - Não, Mestre, - respondeu já ruborizado o monge -. Refletindo profundamente, sob a Luz da Sabedoria, vejo que nada de útil poderia surgir dessas estórias e boatos.
  - Então, essa estória acaba de vazar pela terceira peneira, para dissolver-se na terra. Nada restou para contar. E assim, lembra-te sempre que devemos ser como as abelhas que mesmo no mais imundo dos pântanos, buscam sempre as flores para delas retirar o doce néctar e nunca como as moscas que mesmo em um corpo sadio, buscam as feridas para delas se alimentar.

Ao afirmar tudo isto, não pretendo dizer que não sentiremos medo ou insegurança. Que não teremos dúvida. Ou que teremos a garantia de que nada de mal nos acontecerá. Sim, teremos receios, angústias, e não estamos acima destas coisas, mas podemos conscientemente decidir seguir numa direção diversa daquela para a qual o medo nos moveria. Posso sentir medo e não me submeter a ele. Como diz Steiner em seu poema “Forjando a Armadura”:
“Nego-me a me submeter ao medo

Que me tira a alegria de minha liberdade

Que não me deixa arriscar nada
Que me torna pequeno e mesquinho
Que me amarra
Que não me deixa ser direto e franco
Que me persegue
Que ocupa negativamente minha imaginação
Que sempre pinta visões sombrias.
No entanto, não quero erguer barricadas por medo do medo.
Eu quero viver, não quero encerrar-me.
Não quero ser amigável por ter medo de ser sincero.
Quero pisar firme porque estou seguro e não para encobrir meu medo.
E, quando me calo, quero fazê-lo por amor,
e não por temer as conseqüências de minhas palavras.
Não quero acreditar em algo só pelo medo de não acreditar
Não quero filosofar por medo de que algo possa atingir-me de perto
Não quero dobrar-me, só porque tenho medo de não ser amável
Não quero impor algo aos outros pelo medo de que possam impor algo a mim
Por medo de errar, não quero tornar-me inativo.
Não quero fugir de volta para o velho, o inaceitável,
Por medo de não me sentir seguro no novo.
Não quero fazer-me de importante porque tenho medo  que de outra forma poderia ser ignorado
Por convicção e amor, quero fazer o que faço e deixar de fazer o que deixo de fazer.
Do medo quero arrancar o domínio e dá-lo ao amor.
E quero crer no reino que existe em mim.”

Agora, se trazemos isto para o contexto do dia-a-dia, podemos examinar algumas situações onde nossa própria alma é o campo de batalha no qual se defrontam as forças de Lúcifer e Ahriman de um lado e as de Michael, de outro.
Por exemplo, quando se trata de determinar limites. É por convicção e amor que digo não à minha criança, quando ela insiste em querer algo cujos efeitos são nocivos à sua formação. Mas ás vezes, muitos pais sentem medo de gerar ressentimentos, de tolher a iniciativa dos filhos ou de privar-lhes de um prazer. Ora, tudo isso não é outra coisa senão o medo de perder o amor de sua criança. Apesar das justificativas apresentadas, a verdade é que os pais são “bonzinhos“ com seus filhos porque querem que seus filhos hajam da mesma forma em reciprocidade. Não cedendo a tudo o que os filhos desejam, que normalmente é temporário, revigoramos o poder duradouro do verdadeiro amor. Este amor  se prova eficaz por si só, sempre que solicitado. O preço da indulgência dos pais nos bons momentos é hostilidade e desafeto nos maus momentos. Mas para ser capaz de amar assim, temos de trabalhar interiormente. Fortalecer-nos em nossas convicções para não sucumbir à onda geral criada por uma maioria ainda não suficientemente desperta.
O inverso também é muito comum, isto é, quando limitamos excessivamente as oportunidades de experiências e vivências da criança, por medo de que se machuque, ou imaginando que algo de mal possa acontecer-lhe. A superproteção em determinados contextos, motivada pela insegurança dos adultos responsáveis pela criança produz justamente um efeito enfraquecedor de sua vontade, de sua individualidade. Quando impedimos que uma criança exerça suas habilidades recém- adquiridas, ou tornadas disponíveis para seu desenvolvimento, roubamo-la da oportunidade de fortalecer-se no confronto com a experiência, e de encontra-se cada vez mais com sua própria luz, seu próprio Eu. Com isso esboçamos o princípio de um processo de dependência que pode se agravar com o tempo, pois vai se alastrando para outros âmbitos da vida caso o padrão de comportamento não seja transformado. É aqui, principalmente que a pedagogia Waldorf mostra seu diferencial, pois quando ela é aplicada corretamente, conta-se sempre com outra realidade, não visível, supra-sensível. Contamos e confiamos nos seres que são tradicionalmente conhecidos como anjos, guias do destino humano.
Outra situação muito comum é aquela em que nos falta serenidade e presença de espírito para responder e não somente reagir ao que pode parecer uma ameaça ou perigo, ou uma dificuldade. Para a criança é muito importante poder conviver com alguém que mesmo passando por situações extremamente difíceis é capaz de manter a esperança e a alegria de viver; alguém que embora sinta o peso e a gravidade do momento não deixa de ver e confiar que algo de bom há de nascer disso.
O decisivo, portanto, é que as crianças tenham a possibilidade de conviver ou ter em sua proximidade alguém que procure sempre elaborar um sentimento de coerência e que, apesar de passar por dificuldades ou sofrimentos, possa desenvolver a esperança, manter a fé na vida e irradiar uma alegria de viver.
No campo espiritual, trata-se justamente do mais difícil a ser aprendido pelo ser humano: criar uma força de resiliência por meio da confiança no andamento e sentido da evolução da humanidade.
Quantas pessoas hoje não caem em depressão ou padecem de angústias existenciais tremendas por terem dúvida da existência de um sentido para a vida, ou negarem a existência de Deus ou da natureza espiritual do ser humano? Muitas não têm a força para suportar a violência, a corrupção, as guerras e catástrofes que permanentemente são noticiadas nos jornais. Muitas terminam adoecendo ou caindo nas drogas, no álcool, abusando de medicamentos que lhes anestesiem a consciência da dor, ou então cometendo atos de desespero.
Deve-se, portanto, construir uma visão de mundo que ajude a compreender o sentido e o propósito do Mal, como grande questão de nossa época, de maneira sensata. Isto nos traz de volta ao começo. Ao apelo que nos faz Steiner para o despertar da consciência e de uma concepção espiritualizada da vida, sem a qual não haverá solução para o caos em que nos encontramos.
Em seu livro “A Ciência Oculta” Steiner menciona que este caminho para a ciência do espírito pode ser encontrado, no momento oportuno, por qualquer pessoa que reconheça – ou apenas imagine, ou advinhe – a partir do mundo visível, a existência de uma realidade oculta, como um pressentimento de algo maior, e que, consciente da prontidão das forças cognitivas para o desenvolvimento, isto é, do fato de ser dotado de razão e ser capaz de pensar e julgar por si  mesmo, sinta-se inclinada ou compelida à sensação de que essa realidade oculta poderia revelar-se a ela. A uma pessoa conduzida à Ciência Espiritual por essas vivências da alma, abre-se não só a perspectiva de encontrar a resposta a certas indagações de seu impulso para o conhecimento, como também aquela, totalmente diversa, de vencer tudo o que lhe dificulte e debilite a vida. Em certo sentido superior, significa um enfraquecimento da vida ou uma espécie de morte anímica o fato de um homem se ver obrigado a afastar-se do âmbito supra-sensível ou negá-lo. Sim – sob certas condições, uma pessoa poderá chegar ao desespero se perder toda a esperança de ter uma revelação da realidade espiritual oculta. Essa morte e esse desespero, em suas múltiplas formas, são ao mesmo tempo adversários anímicos interiores do esforço científico-espiritual, e surgem quando desvanece a força interior do homem. Nesse caso, toda a força vital lhe deve ser administrada de fora, se é que realmente ele deve recebê-la. Então ele passa a perceber todos os seres e acontecimentos que lhe tocam o sentimento analisando-os com o intelecto. Mas aquilo que se pode extrair do mundo exterior se esgota. O que preserva deste esgotamento é o elemento divino e oculto que repousa na profundidade das coisas. Caso se acabe no homem a energia para descer a essas profundidades, a fim de renovar sua força vital, por fim, nem mesmo o exterior das coisas se mostrará mais capaz de fomentar a vida.
Ora, o ser humano pode ceder à crença de que não existe um mundo espiritual oculto por trás do véu das aparências de tudo quanto é sensorialmente perceptível. Pode crer que aquilo que se manifesta aos sentidos e é elaborado em seu intelecto já contém tudo o que possa existir. Entretanto, essa ilusão só é possível para a superfície da consciência, e não para sua profundeza. O sentimento e  o desejo não se encaixam nessa crença enganadora. De alguma maneira, eles voltarão sempre a ansiar por algo oculto – cuja privação os faz lançar o homem na dúvida, na incerteza da vida e até no desespero. Um conhecimento que torne o oculto manifesto é apropriado para vencer toda desesperança, toda insegurança da vida, toda aflição – em resumo, tudo o que debilita a alma e a incapacita para o necessário desempenho na totalidade do mundo.
Eis o maravilhoso fruto cognitivo da Ciência Espiritual: proporcionar força e firmeza à vida e não apenas a satisfação do desejo de saber.Força para o trabalho e confiança para a vida.

“Lá embaixo, profundo na alma,
Há uma força verdadeira.
Força que me pode guiar através do caos da vida e das dificuldades da existência.
Paciência e Confiança, tenho em mim de procurar,
Pedindo ao Espírito Cósmico por seu auxílio.
Ele, seguramente, força me dá, se esperar eu consigo,
Até encontrá-la em meu coração”
                                                      Rudolf Steiner

 

 

Referências bibliográficas:

1) O Encontro com o Mal – Sergei Prokofieff
2) Ciência Oculta – Rudolf Steiner
3) Como Superar a Necessidade Anímica de Nossa Época – R. Steiner
4) Metamorfoses da Alma – Rudolf Steiner
5) Salutogênese – Dra Michaela Gloeckler

Sugestões de leituras complementares:
1) A Educação da Criança à Luz da Ciência Espiritual – R. Steiner
2) Nervosismo e auto-educação – coleção textos escolhidos de R. Steiner
3) A Educação Prática do Pensamento

 


 

Comentários (0)