Textos Comunidade de Cristãos
A coragem humana (Herman Melville)
Herman Melville (1819-1891)
“ sim, sim”, disse um dos homens, Starbuck é homem cuidadoso como ninguém mais por aí.” Veremos, sem muita demora o que quer dizer “homem cuidadoso”, quando usada por um marinheiro, ou por um caçador de baleia.
Starbuck, o segundo imediato, não era nenhum cruzado em busca de perigos; nele a coragem não era uma virtude, mas uma coisa útil e á mão em todas as ocasiões mortais. Além disso, talvez pensasse que na atividade baleeira a coragem era uma das provisões de grande importância para o navio, tal como a carne ou o pão, e não tinha nenhuma inclinação para olhar ameaçadoramente as baleias depois do pôr-do-sol, nem para continuar lutando com um peixe que teimava demais em lutar com ele. “Pois”, pensava Starbuck, “eu me encontro neste perigoso oceano para caçar baleias, como meio de vida, e não para ser morto por elas, a fim de que vivam.”
Com lembranças desse tipo e , além do mais, dado a certa superstição, como já se sabe, a coragem desse Starbuck, que podia, sem embargo, destacar-se, devia afetivamente ter sido extrema. Mas não era razoavelmente natural que um homem assim constituído, e cheio, como ele, de tão natural que essas coisas deixassem de engendrar subrepticiamente nele um elemento que, em certas circunstâncias adequadas, irromperia de seu círculo e lhe reduziria a cinzas a coragem. E, por mais bravo que ele fosse, tinha principalmente aquela espécie de bravura, discernível em alguns homens intrépidos, que, embora agüente firme, em geral o conflito com os mares, com os ventos, com as baleias, ou com qualquer dos pavores comuns e irracionais do mundo, não pode suportar aqueles terrores mais terríveis, porque mais espirituais, que ás vezes nos ameaçam emboscadas na fronte contraída de um homem vigoroso e encolerizado.
Mas, se a narração subseqüente revelasse, em qualquer hipótese, o completo declínio da fortaleza do pobre Starbuck, dificilmente eu teria coragem para escrevê-la; pois é a coisa mais triste, senão chocante, expor a decadência da bravura da alma. Os homens podem parecer detestáveis, como as sociedades anônimas ou as nações; podem ser velhacos, tolos e assassinos; podem ter rostos ignóbeis e macilentos; mas o homem, como ideal, é tão nobre e cintilante, uma criatura tão grandiosa e resplendente, que, sobre cada mancha ignominiosa que tenha, os seus semelhantes devem correr a atirar seus mais custosos mantos. Aquela imaculada humanidade que sentimos dentro de nós, tão longe dentro de nós, que permanece intacta quando todo o bom nome exterior parece ter-se esvaído, sangra com a mais lancinante dor ao contempla o indisfarçado espetáculo de um home de bravura arruinada. Nem a própria piedade, ante uma visão tão vergonhosa, pode sufocar completamente suas censuras aos astros que permitiram isso. Mas essa augusta dignidade de que falo não é a dignidade de reis e mantos, mas aquela rica dignidade que não se cobre de trajes de gala.
Podereis vê-la brilhar no braço que empunha uma picareta ou prega um prego; aquela dignidade democrática que, sobre todos os trabalhadores, irradia infinitamente de Deus; do próprio Deus! Do grande Deus absoluto! Do centro e circunferência de toda a democracia! Sua onipresença, nossa divina igualdade! Se, portanto, aos mais baixos marinheiros, renegados e párias, daqui por diante eu atribuir altas qualidades, embora ignoradas; se os envolver em tragédias virtudes; se até o mais lastimável, e talvez o mais degradado de todos eles, por vezes erguer-se aos mais altos píncaros; sustenta-me ó justo Espírito da Igualdade, que estendeste um só manto real de humanidade sobre toda a minha espécie!