Textos Comunidade de Cristãos
A Espada de Micael na mão do homem (Barbara Nordmeyer)
Barbara Nordmeyer - 1989
(Tradução Liselotte Sobotta)
Na missa das igrejas ortodoxa e católica sempre se considerou uma necessidade óbvia, pedir a força e o auxílio do arcanjo Micael para a realização do sacrifício. Também na Comunidade de Cristãos chama-se a imagem de Micael para diante olhar interior. Irradiante brilha sua face, ao mesmo tempo perpassada pela chama da seriedade do mundo. Por sua força espiritual, ele mantém sob seus pés os poderes obscuros do dragão. Também a Mão de Micael se apresenta ao olhar da alma, em parte estendida em rigorosa defesa, em parte, por instantes mudando para um gesto de aceno.
Mas a espada! Por que nessas orações não se fala da espada? Pois esta é o seu signo por excelência, a ele pertence como nenhum outro. Seria de pensar, que hoje o arcanjo quer entregar sua espada nas mãos do homem, conclamando-o para companheiro de luta nesta época da história da humanidade? Isto não significa outra coisa senão que nós mesmos, sem o saber muito bem, estamos com a arma nas mãos para combater mal, qualquer aflição e angústia, apenas tendo que aprender a manejá-la. Pois conhecemos a antiga sabedoria, adquirida através do manejo paciente e permanente da Natureza, de que não existe doença para a qual não cresça também uma planta curativa. Continuando nesta linha de pensamento, não podemos também dizer que não há mal ou provocação para a qual não nos seja dada também a força para suportá-la, a coragem para suportá-la – em nós mesmos?
Quando alguma coisa grave nos atinge, facilmente exclamamos: Não há um Deus que ajude? Nós procuramos a mão auxiliadora fora de nós. No entanto, poderia ser que Deus colocou a força auxiliadora em nosso próprio coração, que em nosso íntimo Deus semeou tudo o que se faz necessário, apenas é preciso que o despertemos para a vida.
Eduard Moerike exprimiu isso assim:
“Sim, minha sorte longamente habitual
Enfim me abandonou!...
O que fazer? Haverei de lançar mão,
Maldizendo meus dias,
Do veneno ou do punhal?
Esteja tal longe de mim!
O que é preciso é um silêncio
Penetrar no coração...”
Exatamente esse é o caso! “O que é preciso é um silêncio penetrar no coração”. Neste acharemos tudo. Apenas temos que aprofundar-nos nele; de lá nos vem a experiência de que a espada de Micael foi entregue ás nossas mãos. Somos companheiros dos anjos, e agora chegou o tempo de precisarmos saber disso. Quais são as aflições que hoje mais nos oprimem? Os perigos conhecidos, os que podemos ver de frente, não são os piores. Contudo, cada vez mais percebemos que estamos expostos ás ameaças de poderes ainda ignorados. Sobe-nos o medo. O inimigo que não conhecemos é o que mais no amedronta. E, como a humanidade do nosso século tanto caiu no desconhecimento das verdadeiras potências que governam a vida, acha-se exposta ao medo. Medo da morte, cujo território não conhecemos; medo das restrições na vida exterior; medo da doença e solidão, finalmente o medo em si.
Uma coisa devemos saber: são as representações mentais que nos amedrontam. Se depois formos efetivamente confrontados com o infortúnio, ficamos calmos e percebemos que junto com a carga nos advém uma nova força para suportá-la, da qual nossas representações mentais nada podiam saber. Existe uma arma contra o medo, esse problema crucial da nossa época? Quando entramos em um lugar escuro que não conhecemos ficamos inseguros. Iremos de encontro a algo que nos magoará? Há um perigo á espreita? A escuridão parece se condensar e constituir um ser que nos oprime e faz nosso coração bater mais acelerado. Se tomarmos coragem para conhecer o lugar, ascendendo uma luz ou apalpando aos poucos as paredes, os objetos, até nos familiarizarmos com eles, junto com a insegurança desaparece também o medo.
Em quase tudo o que se refere ao anímico-espiritual, a humanidade vive hoje como em um lugar escuro que não procuro conhecer. Nós empregamos todas as forças para conquistar o espaço físico e depois sucumbimos á opinião: “Para além a perspectiva nos foi vedada” (fausto). O âmbito onde a alma humana tem o seu primórdio, no qual estão fundamentados seus destinos, permanece desconhecido. Essa escuridão causa medo.
No evangelho de João há uma palavra do Cristo que de uma vez por todas nos pode curar da superstição de que temos que resignar-nos em relação ao conhecimento do suprassensível: ”Devereis conhecer a verdade, e a verdade vos libertará” (Jô 8). Nós desaprendemos a perceber a seriedade das palavras de Cristo: ”Ainda tenho muito a vos dizer, mas agora não o podeis suportar; quando vier aquele, o espírito da verdade, ele nos levará a toda a verdade” (Jô 16). Hoje há uma Ciência Espiritual que a si mesma se compreende como servidora do Cristo. Com ela podemos aprender muito sobre os reinos espirituais, dos quais procedemos quando nascemos para os quais voltamos através da morte, e nos quais está enraizada nossa personalidade. Se aprendemos a nos sentir como um membro do divino-espiritual, então nossa existência não será abalada tão intimamente quando as condições de vida mudam.
Certos quadros que representam o arcanjo Micael segurando a espada podem tocar-se particularmente quando observamos o lugar da espada: Calmamente ele a mantém horizontalmente sobre a cabeça na esfera da clareza de pensamentos. Se nós aprendermos a manejar essa espada do conhecimento do espírito, nossos medos desaparecem. A verdade liberta e cura.
Mas, além disso, há também as muitas outras cargas da vida, dores da alma contra as quais o mais rico saber nada pode, dores que precisam ser sofridas e suportadas. Desilusão, inimizades – até podemos intuir como tudo tem relação entre si, mas a ferida ali está e dói, senão seríamos humanos. O sofrimento por causa das fraquezas do próprio eu, quando ferimos outros, esse ardor que nos queima, temos que experimentá-lo e agüentar. Nada adianta contra tais dores, pois foram atribuídas de cima ao nosso destino, á nossa alma. Ao final, participaremos melhor do seu poder de cura, se delas nos defendermos o menos possível. Esta não é uma atitude passiva, um simples papal de sofredor. Também nesse caminho podemos ser seguidores de Micael.
“Uma espada atravessará tua alma” (LU 2, 35). Essa palavra não foi dita só para Maria, ela vale para toda alma humana. É preciso fazer a experiência e suportar. Defender-se apenas aumenta a dor. A pergunta torturante “por que” pode então aos poucos ser transformada em “para que”.
Mas “temos que silenciosamente penetrar em nosso coração”. Até um dia vermos que a cada espada no coração é forjada em forma de cruz e desta flui bálsamo curativo. É que existem coisas que temos que vencer, o medo, por exemplo, pela espada do conhecimento. E existem outras sob as quais temos que nos curvar humildemente, porque são maiores do que nós. Então a espada no coração se transforma em cruz de ouro.
Há ainda uma última questão: Se conquistarmos para nós os espaços espirituais do conhecimento, de onde vem a força que perpassa as almas tíbias para perderem o medo; se nos empenharmos em purificar o coração no fogo da dor, no qual a espada incandescente se transforma em cruz – um resto permanece: O que será da humanidade, da terra? Ainda há como salvar esse todo? Não temos que assistir impotentes como tudo corre para o declínio?
Contra o poder da preocupação que paralisa a nossa verdade, nos desencoraja, efetivamente necessitamos de uma espada. O problema da paralisia da vontade levando á resignação é um dos maiores em nossa época tão movimentada: este “não mais poder cobrar ânimo” para qualquer coisa que vai além do dia-a-dia; este sentimento de impotência perante o mundo; esta sensação de que o tempo cresceu por cima da nossa cabeça! Mas é o tempo de primeiro plano que nos tira o fôlego. Há ainda um outro tempo que não se mede pelo relógio. Assim como ao tempo de primeiro plano está associada a agitação e a pressa, á outra dimensão temporal liga-se a calma.
“Não te aflijas!
Eterna á a lei que rege
O florir da rosa e do lírio”
(Goethe)
Todos os gestos de vida autêntica são calmos, quase sem ruído. O por do sol, o lento ascender das estrelas, o amadurecer das frutas – quase não percebemos. E, no entanto, do retorno uniforme, calmo, confiável desses movimentos dos astros depende a vida na terra. Torna-se cada vez mais uma questão existencial, se conseguimos ou não nos ligar interiormente ao eterno e tranqüilo fluxo do tempo. O tempo exterior com seus ofegantes impulsos volitivos exige o tipo dom homem eficiente, aquele que sabe fazer. Quem procura o acesso aos grandes ritmos do vir-a-ser do tempo criador, este podemos dominar exercitante, aquele que trabalha longamente sua vontade a fim de se tornar aos poucos um instrumento dos poderes superiores. “Faze de ti um órgão”, dizia Goethe. As tarefas do dia devem ser executadas como deveres a serem cumpridos rigorosamente. Mas por trás dessas está o amplo território das metas de trabalho interiores, para cuja realização nenhum prazo nos aperta, para as quais só temos a liberdade quando fazemos nossa a expressão de Lessing:”Não é minha toda a eternidade?” Nesse campo, o fazer, o exercitar é em si mesmo um valor; todo apressar egoísta só retardaria o frutificar.
Observamos que a par do nosso homem diário, que age no primeiro plano, há ainda um segundo homem em nós. Este por enquanto ainda é um vulto impreciso, ou, digamos, bruto e informe. Ele está á espera de que o cinzelemos paciente e diariamente, durante anos, decênios. O irritável para paciente, o impulso para o sereno, o crítico para positivo. Sucesso ou insucesso são de segunda ordem, o exercitar é o valor em si. Aos poucos efetua-se uma leve soltura e começa-se a entender a palavra de Christian Morgenstern: “Eu assistia ao que eu fazia”. Ainda há um segundo homem em mim, e somente este merece ser chamado homem. Este aos poucos pode constituir-se em instrumento dos deuses. Os seres divinos podem penetrar no que está vindo-a-ser, por pouco que seja, e usá-lo como instrumento para a construção de um novo mundo do futuro, o qual se realiza bem em meio ao que está em declínio.
Não, nós não somos impotentes. Quem enceta o caminho do nascimento do homem interior e desde o início conta com longos espaços de tempo, vivenciará uma maravilhosa libertação. A paralisia desaparece, a falta de sentido recupera o sentido. Não nos tornamos alheios ao mundo, porém mais aptos. Para a atividade interior tempo e circunstâncias são indiferentes e o desgaste a quem em toda parte estamos expostos perde o seu caráter deprimente, porque o olhar desperta para o vir-a-ser dos silenciosos processos espirituais, que se efetuam recônditos e discretos como o desabrochar da flor, o nascer do sol e o circular das estrelas ao redor da terra.
Uma dádiva conferida aos poetas é o senso de percepção especial que lhes permite localizar como por uma varinha de condão os veios de ferro e de ouro no subsolo da humanidade. Sobre o reino do verdadeiro homem, que cresce no oculto e se constrói no invisível, Goethe falou nas imagens do seu “Conto da serpente verde a da bela líria”. Descreve um templo que se fundamenta na profundeza, e no oculto espera pela hora de aparecer no visível do dia. Ainda não é hora. Mas um dia ele subirá e os reis que nele operam assumirão o governo. Um dos reis envolto em mistério é constituído de ferro. Nele se manifesta a força da vontade, a seus pés acha-se uma espada. A qualquer pessoa que a queira empunhar são ditas as enigmáticas palavras: “A espada á esquerda, a direita livre!” È uma palavra sobre a qual não podemos nos admirar o suficiente! – Essa espada não deve ser segurada com a mão direita, combatente, que desfere golpes para fora. É, isto sim, a arma que o homem maneja no íntimo, vencendo, por exemplo, a inércia. “O que o homem sente como força de todo o seu ser egóico, isso é sua espada” (Rudolf Steiner). Com esse instrumento do exercitar ativo da vontade elabora-se o futuro reino da plenitude humana.
O homem é um companheiro de homens e anjos. Na época outonal aparece diante de nós a poderosa imagem do arcanjo: a fronte irradiante de sol com seu severo olhar, a mão indicadora. Dele recebemos a espada que nos dá força na luta contra os poderes da escuridão. Bem no meio do que vai declinando, é-nos permitido participar da construção do secreto futuro reino da realeza do homem.
(Extraído do livro Micael - coletânea de textos-1998 - Comunidade de Cristãos, Movimento de Renovação Religiosa)