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Histórias

O trabalho feito antes do nascer do sol

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(Uma história para crianças maiores e adultos)
 
Era urna vez uma ferraria e um ferreiro. O ferreiro, porém, era um ferreiro especial, porque seu trabalho começava bem antes do nascer do sol. É um trabalho muito duro. Ao realizá-lo fica-se cansado e triste, não se fala e toma-se paciente. Esse trabalho exige muita força, pois se vive solitário e se forja de madrugada.
Era noite e o ferreiro não estava na sua ferraria. O espírito do fogo dormia na forja. Apenas um brilho de luz bem suave passava pela ferraria.
O fole deixava o seu estômago cair em dobras flácidas. Ele tinha a aparência de um homem bem gordo, que houvesse emagrecido de repente. Esta imagem provoca risadas, mas na ferraria não havia ninguém que soubesse rir.
Devagarzinho a bigorna virou a sua cabeça grande com o focinho pontudo para todos os lados e examinou o ferro velho que deveria ser forjado naquele dia. Não era muita coisa. Apenas algumas peças. Elas estavam num canto, sujas e empoeiradas como as pessoas recém-chegadas de uma longa e penosa caminhada.
A bigorna aborreceu-se, “que gente é essa que se encontra aqui! Ainda bem que isso vai para a forja antes de ser colocado sobre a minha cabeça limpa. Senão, seria nojento. Não, muito obrigada. Eu sou limpa!”
Desdenhosamente a bigorna torceu o grande focinho e virou as costas para o ferro velho. A bigorna era mesmo uma cabeça dura. Ela não pensou que também ela era de ferro e que o ferro velho que tinha vindo de tão longe também ficaria assim brilhante como ela, se o espírito do fogo tornasse conta dele e o martelo o forjasse. Ela pensou que só existisse ferro brilhante e ferro sujo e empoeirado mais nada e ponto final! Ela era mesmo uma cabeça dura e também não sabia com que sacrifício seu mestre havia recolhido este ferro velho para forjá-lo de madrugada.
O velho ferro sentiu-se realmente aliviado quando a bigorna virou-lhe as costas e ele não mais sentiu seu olhar hostil. Ele havia sentido esse olhar no mais profundo do seu ser, ainda que estivesse tão empoeirado e sujo. Então as peças de ferro velho começaram a conversar baixinho. Eram peças de várias idades. Entre elas haviam peças muito antigas, que na verdade poderiam estar num museu de antigüidades. Outras eram bastante jovens, estavam no mundo há bem poucos anos, mas na aparência todas eram perfeitamente iguais.
A senhora está tão enferrujada disse uma corrente atenciosamente a uma velha espada. “Essa é uma doença muito ruim:” “Certamente a senhora não se sente bem.” A espada suspirou com dificuldade. É um velho mar disse ela “sofro já há muitas centenas de anos. São manchas de sangue eu vi coisas terríveis na minha vida. Eu passei por muitas mãos. Servi para um matar o outro um me tirava da mão do outro para matar o terceiro. Sobre mim caíram lágrimas e sangue e aquele que mais sangue havia derramado, com as mesmas mãos tocou os sinos e chamou isso de sua vitória.”
“Eu tenho bem poucos anos de idade” disse o jovem sabre. “Mas eu já vivenciei a mesma coisa” “Eu vi outras vitórias” disse urna velha e enferrujada fechadura. “Eu vi pessoas desapegadas que seguiram seus ideais. Eu tranquei as portas atrás das quais elas ficaram presas. Elas apodreceram no cárcere. Mas as suas idéias passavam por mim através das portas do cárcere e saíam por todas as ruas.”
 “Eu sou bem mais jovem que você,” disse uma outra fechadura “mas eu tive de fazer a mesma coisa e vi as mesmas coisas.”
O espírito de fogo da forja respirou mais fundo, e a primeira luz da madrugada passou sobre o ferro velho. Ele ficou muito embaraçado e deprimido porque agora as várias manchas tornaram-se mais fortes do que no brilho do espírito do fogo que respirava com dificuldade na forja estreita. O ferro velho olhou triste para o seu corpo sujo e irritado falava coisas sem sentido, lamentando-se. “Eu tive que prender um assassino’ choramingava a corrente “era a sua última noite. Ao lado dele sentava-se um homem de bata que segurava nas mãos um livro no qual havia estampada uma cruz dourada.”
“Eu tive que trabalhar no matadouro” disse uma faca comprida “eu vi o pavor dos olhos de milhares de criaturas antes que a luz que brilhava neles se apagasse para sempre. Eu vi milhares de almas de animais a vaguear numa casa cheia de sangue e horror. Então um pedaço de mim era antes uma pérola no rosário de um homem velho e silencioso. Estávamos na Índia e o homem velho e silencioso varria o caminho à sua frente com braços frágeis para não pisar e esmagar nenhuma criatura. Ele chamava o verme de seu irmão e pediu ao verme que seus Deuses o abençoassem. Ele falava da corrente das coisas. Na areia ele desenhou a suástica e, concentrado, desfiava o seu rosário, enquanto o vento apagava o desenho. Os padres estrangeiros da Europa ridicularizavam a crença do velho homem.”
Atualmente nós temos a Europa e a sua cultura “disse o sabre furioso, e balançando, livrou-se de um ridículo pingente dourado que estava pendurado nele.
“Nós temos que passar por muitas formas” disse a faca. “Disso eu sei do velho homem da Índia. Só eu não sei em qual nós vamos ser transformados.”
“Nessas formas nós não podemos ficar gritaram todos confusos. “Nós somos sujos e cheios de manchas. Nós queremos ser forjados. Queremos pedir ao espírito do fogo que nós dê outra forma. Mas nós não queremos esperar até o nascer do sol. Não queremos que o sol nos veja assim. Então ele iluminará a nossa sujeira e as nossas manchas. Mas o ferreiro não vai aparecer tão cedo. “Com certeza ele ainda está dormindo.”
 Aí uma faísca saída da forja caiu no meio do ferro velho. “O ferreiro não está dormindo, daqui a pouco ele vai aparecer” sibilou a faísca, “é um ferreiro especial. Seu trabalho é feito antes do nascer do sol. Depois a faísca se apagou.
A porta abriu e o ferreiro entrou. Era um homem sério e calado, de olhar triste. Isso vinha de seu trabalho. Ele pisou no fole, que abriu as suas dobras e encheu-se ficando bem gordo. O espírito de fogo acordou na forja estreita, e o ferreiro colocou todo o ferro velho no fogo. Depois ele tirou o ferro velho do batismo de fogo e o colocou na bigorna. “O que vai ser de nós, que formato, que formato?” perguntou o ferro velho, e a faca pensou no pobre homem velho da Índia.
O ferreiro bateu com força. As faíscas se espalharam pelo ar. Ele forjou apenas uma única forma, a última de todas as formas. Ele forjou a alma do ferro. Era o trabalho daquele dia. Quando ele terminou uma relha de arado brilhante ficou sob a terra orvalhada na frente da ferraria.
Neste momento o sol nasceu.
Infelizmente é apenas uma historia...