Ciclo de Festas
O Ritmo e as Festas Anuais (Leonore Bertalot)
Com o desenvolvimento do intelecto, diminuiu e perdeu-se a vivência do ritmo da Natureza, O homem se libertou da dependência dos fenômenos da Natureza. O decorrer da evolução do homem traria consigo esta auto- afirmação, o anseio de liberdade em todos os sentidos: não depender da Natureza, criar um ritmo de vida próprio, não seguir cegamente tradições já vazias. Mas a Natureza continua tendo ritmos cíclicos que também nos influenciam, e a perda de interesse pela Natureza levou ao que hoje chamamos problemas de ecologia, devido à ação irresponsável do homem.
Podemos sentir isto como um chamado da Natureza, de atuar com ela e não contra ela, conscientes de que a Natureza continua nos dominando, de que só podemos atuar livremente quando em consenso com ela. Por amor, por interesse verdadeiro, não por mera tradição, podemos viver, acompanhar esses ritmos.
Antigamente os povos eram guiados a celebrar, a festejar o retorno cíclico de fenômenos como os solstícios, a noite e o dia mais longos do ano, e o equinócio da primavera e do outono. Nesses dias ou semanas festejavam-se, comemoravam-se os seres divinos que eram vivenciados como as forças atuantes que se manifestam nas mudanças e transformações do clima, da vegetação do curso dos astros.
Com devoção e veneração eram seguidas e observadas essas manifestações de sabedoria cósmica que tudo criou e tudo mantém, fazendo com que o homem tenha as condições necessárias para viver na Terra. Sentia-se uma profunda gratidão, sentimento este de intensa religiosidade.
O homem ainda não se sentia tanto um indivíduo, um ser independente, mas muito mais um membro, uma parte integrante do mundo todo, uno com o mundo todo. Da mesma maneira como um dedo da mão, se tivesse sensação e reflexão própria, sentir-se-ia parte unida ao corpo todo e não algo desligado, independente, assim era a sensação de dependência dos homens no passado.
Esta mesma sensação é muito forte em nós quando somos crianças: não nos sentimos apenas ligados ao núcleo familiar, mas sim unos com o ar, o sol, o vento, o mundo todo. É este fato que torna impossível para a criança pequena poder ter uma reflexão própria: ela se sente carregada, guiada, dirigida por forças superiores, sem questioná-las, sente-se parte delas.
Para refletirmos sobre algo, temos que estar desligados, desprendidos do objeto em questão. Fazer isto, a criança aprende só depois dos nove anos de vida, pelo menos de uma forma consciente. Antes, é como se ela repetisse estados de consciência da humanidade no passado.
Poderíamos dizer que o homem, em parte, é Natureza, e, em outra, é espírito independente. Sua parte Natureza é o corpo com todas as funções vitais.
A parte espírito consta da consciência, das representações mentais, dos seus sentimentos, seus impulsos, seus sonhos, ideais, apetites etc, que se centram na vivência de ser uma personalidade, um individuo que, através dos instrumentos que lhe proporciona o corpo, os órgãos dos sentidos, por exemplo, se relaciona com o mundo ao seu redor. Se olharmos mais de perto, vemos que este espírito, estes indivíduos com seus impulsos e cismas, nem sempre atua em consenso com seu corpo, que lhe permite a existência do mundo físico. Muitas vezes perturba processos, cria desequilíbrios funcionais, causa fadigas exageradas, disritmias, enfim, todo tipo de distúrbios e doenças.
O médico sábio, então, não receita apenas medicamentos, mas estuda com o paciente as causas que muitas vezes têm sua raiz na maneira inconsciente de desrespeitar as leis da natureza que regem nosso corpo. Isto é, criarmos como ser espiritual-anímico, desequilíbrios ecológicos em nosso ser corporal-vital. É o preço que pagamos por nossa liberdade de ação adquirida. Como seres conscientes, teremos então o desejo de atuar ao máximo possível em consenso com as leis vitais de nosso corpo.
Queremos ser livres, mas também inteligentes, sábios! E assim surgem novos modos de vida que se expressam na alimentação, nas vestimentas e até na arquitetura e na procura da volta à Natureza. O anseio de independência, característica de nossa civilização moderna, causa muitos problemas às crianças que estão em pleno crescimento e desenvolvimento de seu corpo e, ao mesmo tempo, procurando a própria personalidade e o relacionamento com o meio ambiente.
Fala-se tanto de educação hoje em dia, os consultórios dos pediatras e psiquiatras estão cheios, fala-se de problemas de ambientação, de integração, e aumentam os casos de autismo e suicídio infantil, fugas de adolescentes etc.
Vida é ritmo. Tudo que tem ritmo, tudo que dá força e não cansa é o que apresenta processos rítmicos. É só pensar como nosso sistema rítmico-circulatório é o sistema central que mantém nosso organismo com boa saúde, coordena e harmoniza os sistemas neuro-sensorial e metabólico-motor, O ritmo da respiração e do fluxo de sangue pelo coração não para, é sinal de vida. E existem outros ritmos em nossa vida, que na infância devem ser respeitados, como o ritmo entre vigília e sono. Se ele corre com regularidade, como também aquele das refeições, da higiene etc., então a criança pode crescer harmoniosamente e terá saúde.
Para ajudar na procura da personalidade do futuro ser adulto, há ritmos que a família e o meio ambiente podem respeitar e marcar conscientemente, fazendo com que a convivência social seja harmoniosa, sadia e até terapêutica para grandes e pequenos.
Penso em comemorações de dias especiais na semana, de festas familiares, festas cíclicas do ano etc. Mesmo cada dia pode ter momentos de pausa, de calma interior, intercalados com os afazeres diários da rotina. O ritmo sadio não é como o compasso da música ou a regularidade morta de uma máquina.
Ritmo tem vida, aceleração, intensificação, variação, transformação. Porém, para não se perder, precisa apoiar-se num compasso, numa batida básica. Por exemplo, todos os dias levanta e deita o sol, (compasso do dia e noite), mas quantos ritmos diferentes não existem no número de horas de luz e de escuridão! E destas variações surge outro ritmo, o das estações, que também não ocorrem em ciclos rígidos.
Vejamos agora o ritmo das Festas Cristãs:
A Páscoa, festa máxima, representando a morte e ressurreição de Cristo, retorna cada ano num ritmo muito especial. Não podemos fixar esta festa em nosso calendário anual sem levantar os olhos ao céu, às manifestações cósmicas, como o equinócio em março e, relacionado a isto, as fases da lua.
Festas representam uma intensificação dos ritmos regulares diários, e, ao mesmo tempo, também uma interrupção, um intervalo, uma inspiração profunda depois de muita expiração do corre-corre diário. Somos chamados a respeitar os ritmos de vida do nosso corpo e, para a vida do nosso ser espiritual, nosso eu, podemos nos sentir chamados a criar, a programar e festejar tantos momentos altos, elevados sobre o comum, quanto queiramos e acharmos sadios. Exemplos e conteúdos, a vida oferece um sem-fim. Porém, quanto mais nos ligam com a Natureza, aprofundando nossa vivência da imensidão dos mistérios da vida, tanto mais força e vitalidade nos darão e tanto mais harmonia existirá no dia-a-dia na vida da família, no meio ambiente social. Vamos compor sobre o compasso dado pela natureza, a nossa própria melodia.
À obra!
Vamos dirigir a nossa vida de forma que ela dê mais vida e harmonia ao nosso próximo, e então poderá conviver conosco, em todos estes ritmos, Aquele que disse: - “Eu sou a vida, a luz e o caminho...”
Na Terra vivemos no espaço e no tempo. O espaço fecha, encerra, exclui, limita, acaba, termina. O tempo flui, é ilimitado e nós sempre corremos atrás dele. Isto cria a insegurança, incerteza, problemas sociais. Para nos sentirmos melhor, criamos espaços de tempo: uma hora, um dia, um ano, etc. E estes espaços nos são dados pelo cosmo, pelo sol que levanta diariamente e deita em horário rítmico.
O decorrer de nossa vida pode ser um simples fluir do tempo, do qual participamos e somos levados pelos acontecimentos mais ou menos inconscientemente. A pessoa que quer determinar a sua vida deve saber organizar-se dentro do tempo. Se ela quer se conhecer como um ser espiritual-anímico, oriundo de um mundo superior, não físico, sem deixar de pisar conscientemente com seus dois pés no chão da terra, achará uma grande ajuda na vivência sempre mais intensa do que chamamos o ano cristão, ou as festas cristãs.
Cada ano em que acompanhamos as comemorações dos feitos crísticos pode tornar-se um passo à frente no caminho do autoconhecimento, do aprofundamento e ampliação da nossa compreensão da vida e do sentido da existência. Que isto seja uma necessidade para todos os que querem educar e formar futuros adultos, é óbvio.
E por isso, cabe a nós estudar e tentar nos aprofundar no conteúdo destas festas. Vejamos primeiramente o ritmo em que elas decorrem. Em dezembro, último mês no calendário, na noite do 24 ao 25, logo depois do solstício de verão, a cristandade comemora o nascimento de Jesus que, como adulto, devia ser o portador de Cristo.
Já a grande festa da Páscoa, da Ressurreição de Nosso Senhor Cristo, depende para sua fixação no calendário, da relação entre o Sol e Lua, em torno do equinócio de março.
Quarenta dias depois da Páscoa, em maio geralmente, temos o dia da Ascensão do Nosso Senhor, seguido dez dias mais tarde pela festa de Pentecostes, ou a descida do Espírito Santo nos discípulos como “línguas de fogo”.
No sexto mês do ano, comemora-se outro nascimento: o do precursor, do anunciador do Cristo, João Batista.
Seis dias depois do segundo equinócio do ano (23 de setembro), o calendário católico marca o dia de um arcanjo. O dia 29 de setembro é o dia do Arcanjo Miguel, ou Micael, como preferimos chamá-lo.
Se entre o nascimento de Jesus e o de João existe uma relação bem nítida, surge a pergunta se haveria alguma relação entre o acontecimento na Páscoa e o dia do Arcanjo Micael. Na Antroposofia, podemos encontrar um novo sentido nas mensagens dos Evangelhos e, assim, o ano cristão pode se tornar um guia para nós no caminho iniciático.
Na evolução da consciência da humanidade, podemos ver a morte do conhecimento do espírito. Houve tempos em que a humanidade tinha pouca vivência através dos sentidos, mas vivia normalmente entre os seres espirituais. Depois, abriu mais os olhos para a manifestação física da criação, continuando ainda consciente do mundo espiritual. Os dois mundos eram totalmente reais para os homens daquela época. Porém, quando o Cristo veio à Terra e se encarnou num corpo humano, sofreu a morte e ressuscitou, só poucas pessoas tinham ainda restos de clarividência atávica. A partir de então era sempre mais difícil imaginar-se algo real com o fato da ressurreição do Cristo. Era necessário que o homem desenvolvesse o intelecto, o pensar com um órgão físico, como o cérebro; mas assim o seu pensar se limitou ao mundo sensorial, e idéias religiosas, espirituais, tornaram-se algo abstrato, algo dogmático, longe da realidade do dia-a-dia. Quer dizer, as pessoas acreditaram num Deus que criou a Terra, mas não queria ou não podia ver esse Deus atuar na sua criação. Quase como se Deus tivesse deixado a sua criação para trás, afastando-se dela e deixando o homem se “virar” nela. Um pensar conseqüente deve também afastar a Divindade Criadora e procurar razões intrínsecas na matéria, às quais pode atribuir uma criação do acaso. Não uma vontade divina que atua e manifesta seu atuar na matéria, mas mutações e evoluções à toa, não impulsionadas por uma inteligência com finalidade.
O acontecimento do Gólgota, a morte e a ressurreição do Deus Homem, é como uma imagem do que deve acontecer com a consciência do homem no curso da evolução.
O Cristo morreu para o mundo espiritual quando se incorporou no Jesus de Nazaré. Mas Ele ressurgiu para o mundo espiritual, vencendo a matéria. Ele penetrou neste mundo que é dominado pela morte da matéria, mostrando à humanidade a sua origem espiritual, que ela estava a ponto de esquecer.
Ele se uniu com a Terra e implantou no homem uma força com a qual este poderá reconquistar o mundo espiritual ou a consciência do espírito. A ressurreição do Cristo se torna uma realidade na alma do homem, um impacto que a modifica, assim como algo do mundo físico pode nos modificar.
Como avisa Rudolf Steiner, a separação total da realidade espiritual, que ocorreu com o pensar humano, já pode ser ultrapassada. Isto, porém, somente por uma atividade espiritual enriquecendo, ampliando nosso pensar com conteúdos da ciência espiritual antroposófica. Somente uma ciência que leve sua pesquisa às realidades do mundo espiritual pode ajudar na ressurreição da consciência humana. A vivência do Mistério do Gólgota é necessária para podermos criar novas festas, especialmente a festa da primavera, a festa Micaélica.
O que é contemplação na Páscoa deve tornar-se força de vontade em Micael. A Antroposofia nos descreve outras formas de vida diferentes das que conhecemos no mundo físico. Ela pode nos aproximar do fenômeno da ressurreição. Em vez de festejar, comemorar na forma tradicional as festas anuais, podemos criar novas maneiras de festejar. A humanidade recebeu a forma de festejar por forças divinas, dos deuses; agora é hora de o homem criar suas festas com a força do seu interior. Ou seja: a divindade atuava de fora, agora deve ser acordada dentro do homem e atuar a partir de dentro dele. Aprofundar-se no sentido do conteúdo das festas anuais é uma oportunidade de relacionar a vivência do mundo visível com conteúdos espirituais, ou seja: ver as manifestações da Natureza, do clima etc., como expressão de seres supra-sensíveis, mas tão reais e atuantes como nós mesmos, criando o compasso do ritmo das festas.
FONTE: Revista Chão & Gente, março de 1998, n°29.
(Texto extraído da apostila Cotovia, que é uma publicação dirigida aos educadores da Educação Infantil da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura da Estância de Atibaia e interessados na proposta aqui apresentada. Ano I - nº1 – março/2006)